Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Regras da caça ao boi de piranha

A imprensa carioca vem registrando esporadicamente alguns aspectos de um contraditório entre a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a Controladoria Geral da União (CGU). De um lado, manifestou-se publicamente o professor Luiz Pinguelli Rosa, diretor do Programa de Pós-Graduação em Engenharia (COPPE), que é modelo de excelência universitária. Do outro, Jorge Hage, dirigente da CGU, modelo de órgão fiscalizador da administração pública. São duas pessoas de reconhecida competência em suas áreas respectivas.

Em que discordam?

Pinguelli acusa a CGU de desmedida em sua ingerência nos assuntos acadêmicos. Primeiro, o órgão fiscalizador arrogou-se à demissão de um professor da UFRJ por irregularidade numa nota fiscal quando exercia uma função de chefia na Reitoria. Segundo, elaborou uma cartilha com regras administrativas que engessam a atividade dos professores federais, chegando mesmo a vetar a sua participação como acionistas de empresas.

Quem tem razão?

Para começar, o professor demitido parece tipificar o caso do boi de piranha ou do bode expiatório. Se ele incorreu em erro administrativo, poderia no máximo ser instado a devolver o dinheiro (26 mil reais, segundo consta) aos cofres públicos. Afora isso, segundo também consta, é um docente probo. Quanto à cartilha, o próprio dirigente da CGU admitiu a confusão do texto e se dispôs à retificação. Sorte… Se fosse confusão com nota fiscal, ele, homem probo, certamente demitiria a si próprio, por coerência.

Consciências” mesquinhas

Mas talvez o ponto mais importante da questão seja bem outro. Alguns anos de experiência como gestor público convenceram-nos da eficácia de jogo da CGU. Ela é um pé-no-saco necessário: marca os atos dos órgãos federais ao longo do ano fiscal e passa a bola para o Tribunal de Contas da União (TCU) arrematar. Esta armação de meio de campo deixa qualquer malfeitor infeliz.

Mas esse desempenho “luxuoso” é também um problema. É que, no Brasil, a eficiência parece acabar incorrendo em autocracia. CGU, Ministério Público e quejandos não escapam à maldição do arbítrio, que é o autoritarismo. Numa paisagem social de corrupção epidêmica, o órgão fiscalizador acaba encarnando o papel do justiceiro, daquele tipo que toma a lei em suas mãos e sai executando a torto e a direito. O outro lado da moeda eficaz tem cara de milícia.

A maldição do poder burocrático é relacionar-se apenas consigo mesmo, ou seja, com a abstração de seu código, sem considerar o concreto de cada situação. Não é um fenômeno novo. Já Thoreau observava que “o respeito reverente à lei tem levado até mesmo os bem intencionados a agir cotidianamente como mensageiros da injustiça”.

A palavra “reverência” tem aí conotação negativa, é um dos indutores do autocratismo burocrático. O burocrata reverente acredita ser a encarnação da razão absoluta supostamente inscrita na norma. Mas, igual a todo ser humano, ele sonha. E o sonho da razão “produz monstros”, como advertia Goya. O nazifascismo, por exemplo, foi um pesadelo da razão tecnocrática.

Um jornalismo de tipo novo poderia dar conta desse fenômeno. Em seu estado atual, porém, a imprensa compactua com tudo que se apresente como oportunidade de denúncia. Nas redações, ao lado de excelentes jornalistas, vicejam também as consciências “investigativas” mesquinhas, que giram como mariposas de verão ao redor dos holofotes do destaque interno. Assim, o nome do docente boi de piranha foi levado aos jornais, seu rosto exposto no Fantástico Show da Vida, da Globo, como se fosse personagem de mensalão.

Para malfeitores

O outro lado da “moeda” supostamente democrática que consagra a liberdade de imprensa é o assédio moral. Finda a tortura física nos quartéis, o burocrata de todo quilate, jornalista ou fiscal, assume a tortura moral com impressionante desenvoltura.

No tocante à fiscalização administrativa, é admissível a hipótese de que a capital federal, Brasília, estimule a tara burocrática que, aliás, tem atrasado a produtividade nacional em todo tipo de setor. Ou se deveria dizer “Brasilha”, tal como se pronuncia popularmente? Ou seja, o “Brasil-enquanto-ilha”, assentado em papel e bytes, dissociado do país diverso e real. “Brasilha” é um bunker de corrupção, atraso e mesquinharias.

Nessa atmosfera emocional generalizada, a gestão pública pode tornar-se adequada ou conveniente apenas aos malfeitores. Estes vivem do risco e acabam sabendo como saírem ilesos do malfeito. O cidadão comum ou aquele que vive de trabalho intelectual não sabe. O probo é candidato virtual ao opróbio. Deus lhe acuda.

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Muniz Sodré é jornalista, escritor, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro