Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O logro e o jogo

Senhores anunciantes, mídia e empresas de TV paga (e a quem se identificar com o problema também, é claro):

Gosto, entre muitas coisas, de boa televisão. Ocorre que, um dia, optei pela TV paga, dita a cabo – diretamente paga. As razões são por demais conhecidas, mas, pelo menos isto, não custa repetir: o conteúdo da programação da TV aberta é, salvo surpreendentes e estarrecedoras exceções, abaixo de qualquer crítica, grosseiro e de mau gosto em fundo e forma, e como inomináveis outras instituições, voltado ao mais eficiente aproveitamento dos pobres de espírito.

Pensei: que maravilha poder escolher um pouco, saborear a liberdade de viver sem novelas e sem inacreditáveis bobagens neandertalescas como os tais BBBs, os malfadados fantásticos programas de variedades e calouros, pagodes, concursos e igrejas, bandos de vendedores e multilojas que alugam dinheiro sem juros sob o disfarce de vender suas porcarias, só hoje. E que bom é viver sem a infernal enxurrada de comerciais de varejão, supostamente interessantes e, até, pasmem, de pretensa utilidade pública, automedicação (se der zebra – e tempo – um médico deverá ser consultado), campanhas falsas, jabás, o endeusamento de facções e tribos de todos os tipos, politicagem sórdida e coisa e tal, além dos noticiários ‘isentos’.

Comerciais torram

E o que se poderia dizer de escapar do nunca por demais amaldiçoado (junto com a tal Voz do Brasil) horário político, obrigatória (mania brasileira) espoliação recheada quase sempre com aquelas gentes malignas, viventes adulterados e fracassados na vida real; seria melhor que estivessem mentindo e prometendo numa jangada naufragando no meio do Oceano Índico, em vez de, vagabundos oportunistas, pretendessem viver a consumir o dinheiro do país sem nada dar em troca, exceto preocupação e vergonha. Um inferno.

E, meus caros anunciantes, acreditem, seus comerciais torram repetidamente a paciência do espectador, especialmente porque o volume de som sempre aumenta misteriosamente nessas horas. Carnaval, ‘mulherada’, cerveja e futebol, mau samba e palhaçada sem sentido e sem graça, como se fosse o retrato verdadeiro do Brasil. Música ruim e, que se dane, vocês acham que é isso o que o ‘povo’ gosta. Mostrem coisas melhores ao povo, que ele gostará mais, com certeza. Bem, problema meu. Certo.

Entendi Elvis Presley

Sou só um, bobalhão, é claro, e não conto. Sim… existem muitas coisas mais importantes, mas eu cansei de ser enganado e ficar quieto – e é só o começo, um treino, porque não é só nisso que somos enrolados. Claro, diriam, só um bobo vê ou se preocupa com televisão, mas eu confesso que gostava de idéia de me entreter, informar e relaxar de uma maneira divertida, simples e prática.

Na TV paga por mim, pude assistir a documentários maravilhosos, filmes que jamais poderia ver na TV aberta; programas inteligentes, agradáveis, um noticiário amplo, multilateral; conheci lugares, vidas e pessoas e coisas extremamente interessantes, vendo o mundo de uma forma melhor e claramente mais crítica. Descobri que há mais por aí afora, melhor e pior e me libertei do monopensar de laboratório.

De uns tempos para cá, entretanto, tenho notado uma crescente inserção de anúncios na TV que pago, com campanhas de péssimo gosto, especialmente as de uma empresa – de sucesso, até me parece, pois está cheia de lojas – que me provoca náuseas ao primeiro som, vendendo uma montanha de coisas de fato caras e de aparente má qualidade ou mau gosto e de necessidade evidentemente duvidosa; geralmente isso é feito com uma locução desagradável e repetitiva, gritaria que me fez até entender Elvis Presley – que uma ou duas vezes deu tiros na TV.

Não pretendo pagar

Anunciantes já chegam ao cúmulo de alugar, rotineiramente nas manhãs de domingo, o horário que eu pago, para as tais televendas e, num clímax hediondo, agora chamam, numa nova campanha, a atenção dos anunciantes para aproveitar as ‘vantagens’ da TV paga, uma opção de mídia que transformará mais uns filmes de uma hora em suplícios de três horas, entre outras besteiras. Daqui para frente, então, veremos, cada vez mais, aqueles anúncios com um auditório de imbecis aplaudindo uma lata de polidor ou uma frigideira com uma nojenta poça de gordura ou, ainda, um aparelho de inchar músculo ou coisa que o valha. E tudo isso em canais supostamente culturais ou informativos.

Não agüento mais; não foi isso que eu comprei, senhores vendedores e anunciantes. Se a coisa persistir, digo adeus à TV paga e me livro de vocês, coisa que já fiz (e não estou só…) com todos os veículos invadidos pela propaganda escandalosamente insistente e persistente, que se vê ultrapassando mais da metade de uma revista, de um programa de rádio ou televisão. Não vou mais ver filmes interrompidos a cada 10 minutos para qualquer idiota berrar as vantagens do nojento grill, pomada, spray, tempero, liquidificador, chá, laxante ou remédio natural da selva contra chulé ou obesidade. Está bem… entendo, respeito e admiro a arte da propaganda; vi muitas obras inesquecíveis e premiadas, momentos geniais, hilariantes ou emocionantes e… não muito freqüentes, especialmente na TV.

Caríssimos anunciantes e mídia: como parece, nós, pobres otários, formamos opinião, usamos e compramos coisas – e não são aquelas porcarias anunciadas aos gritos –, viajamos e tudo o mais. Nós, então, o seu ‘público-alvo’, começamos a perceber o logro e o jogo. Poderemos mudar de fornecedor de TV, de hábito ou desistir de vez, quem sabe, indo ao teatro, lendo bons livros, ouvindo boa música ou voltando mesmo a conversar. Não quero que paguem a minha diversão como não pretendo pagar os seus anúncios. Assim, boa sorte; boas vendas, mas não mais para mim: eu já me enchi.

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Médico, São Paulo