Os reality shows são hoje para a classe mais abastada e intelectualizada da sociedade o que as novelas eram assim que se popularizaram como produto de cultura massificada: sinônimo de mau gosto. Com uma maior aceitação das novelas na esfera dos críticos da mídia, o reality show segue agora como gênero televisivo mundial, transmitido em horário nobre, e principal símbolo da perda de qualidade do conteúdo televisivo na sociedade pós-moderna.
O que motivaria então, uma audiência que ultrapassa os milhões a ignorar as críticas e acompanhar cada edição – e já são 13 – de programas como o Big Brother Brasil, (representado aqui por sua sigla, BBB), veiculado pela Rede Globo desde 2002? Se esse é o (mau) gosto de uma parcela de telespectadores que é mais maioria do que exceção, não há razão para os estudiosos da Comunicação deixarem de olhar o fenômeno como representativo da sociedade em que se insere e potencial alvo de análise.
Por atuar em plataformas multi-midiáticas, o público do programa não se reduz apenas aos telespectadores que acompanham as edições diárias do reality show transmitido em TV aberta pela Rede Globo. Além de poder assistir ao programa pelo sistema de pay per view – que possibilita a transmissão em tempo real, 24h por dia, através do pagamento de um pacote na TV fechada – o BBB é assunto presente em ambientes que vão além da televisão, como as redes sociais na internet.
O telespectador é convidado para espiar o que os participantes fazem no programa, mas o forte apelo que a emissora faz ao aspecto voyeurístico do reality show logo é deixado em segundo plano pelo telespectador ao constatar que os indivíduos que se inscrevem para participar, o fazem com a consciência e intenção de visibilidade. As cenas retratadas não são nada excêntricas ou secretas, pelo contrário, na maior parte trata-se de situações corriqueiras, como cozinhar, banhar, namorar e conversar no sofá. A quebra parcial desta rotina estão nas provas, já aguardadas pelos participantes, em que resistência física ou emocional e submissão a situações de ridículo são necessárias para que conquiste-se de comida à prêmios.
A distância quase científica dos documentários e a narrativa irreal das novelas agradam ao telespectador. Mesmo podendo julgar seus personagens, o público ainda está longe demais deles para promover julgamentos capazes de alterar algo. No Big Brother, as mulheres que traem namorados podem ser expulsas com porcentagens massacrantes de votos, os homens que se exasperam na agressividade correm o risco de saírem antes mesmo que o público memorize seus nomes. A moral, a ética e os julgamentos sociais estão presentes e evidentes como fenômenos culturais e sociais dentro dos reality shows.
Programas como Big Brother não são apenas consequência de uma sociedade do espetáculo da era digital, como só poderiam existir pelos avanços tecnológicos que se intensificaram no século 20. Entre os elementos do espetáculo dos reality shows está a maximização da exploração das imagens e uma proximidade entre o público e os meios de comunicação massivos através, por exemplo, das votações do Big Brother, quando o telespectador escolhe por telefone ou pela internet que candidato deve sair.
Os reality shows expõem sentimentalismo, espontaneidade, o grotesco e a cordialidade convivendo em um mesmo espaço. A hibridização é o processo de dialogar com o novo, tendo como ponto de partida a tradição, resultando em uma ressignificação de conteúdos. A ideia de uma hegemonia midiática que se concretizaria no âmbito da cultura de massa, com uma relação verticalizada entre dominadores e dominados, não cabe mais em um cenário globalizado e híbrido.
A imagem como substituição do diálogo
Osreality shows são a representação máxima do que Debord (1997, p.14) cunhou como espetáculo, ou seja, não apenas um conjunto de imagens, mas uma “relação social entre pessoas, mediada por imagens”. Considerando uma sociedade em que não é mais possível dissociar espetáculo de realidade, já que um se alimenta do outro, a linguagem que fala mais alto é a da imagem. “É o contrário do diálogo. Sempre que haja representação independente, o espetáculo se reconstitui” (p.18).
Se quando pensou a sociedade do espetáculo, na década de 60, Debord focava o espetáculo dentro de um processo de dominação econômica do homem através da valorização social da aparência e o desaparecimento da divisão do trabalho, atualmente é possível vislumbrar que nos reality shows médicos, policiais, comissárias de bordo e professores, por exemplo, não encarnam as identidades sociais que prevalecem fora do programa. Eles incorporam o que o autor chamou de status midiático, ou seja, quando “qualquer um pode aparecer no espetáculo para exibir-se publicamente, ou às vezes, por ter se envolvido secretamente em uma atividade bem diferente pela especialidade pela qual era até então conhecido” (DEBORD, 1997, p.174).
Ao analisar a cultura de massa e a sua relação com a sociedade, Muniz Sodré (1973, p.39) segue a linha de associação dos programas televisivos à espetáculos, considerando assim o grotesco como um “espelho que reflete o id e os demônios das nossas estruturas […] espelho em que a sociedade se olha e se oferece como espetáculo”.
Dependentes do mercado publicitário e, consequentemente de audiência, as redes de televisão brasileiras apelam ao grotesco quando mais precisam garantir que um grande público assista sua programação. É preciso que o telespectador abra mão das demais opções de canais – o chamado efeito zapping – e concentre suas atenções no buraco da fechadura dos programas que propõem testes de convivência.
Defendendo a cultura de massa
Para Néstor García Canclini, a ideia de sociedade do espetáculo, conforme pensou Debord, estará ultrapassada. Ao definir uma nova conceitualização sobre o que é espectador, Canclini (2008) também prevê mudanças na noção de espetáculo. Os espetáculos não aconteceriam apenas em locais determinados e rígidos, onde o espectador deve manter distância e apreciar leituras, obras de arte ou programas de televisão em espaços institucionalizados e com uma posição de contemplação. Hoje, vive-se uma “espetacularização generalizada do social” (p.48), onde a difusão dos espetáculos não deve ser encarada apenas com a intenção de manipular os oprimidos.
A ideia de ver um grupo de pessoas em uma casa, convivendo e se submetendo a jogos para ganhar dois prêmios ao final do jogo – dinheiro e fama – é atraente para brasileiros e outras nacionalidades latino-americanas, assim como também faz sucesso em países que possuem pouco em comum, tanto no continente africano, como na Índia e na Dinamarca, por exemplo. Em uma sociedade onde as identidades são cada vez mais fluidas do que fixas, os programas televisivos dialogam com a linguagem das inovações capazes de atrair mais público, concretizando assim o que já foi teorizado por Stuart Hall (1997), quando associou a interdependência global à uma nova identidade, também global, que deslocaria as identificações nacionais em representações culturais.
Para entender o sucesso dos reality shows, é preciso lembrar que as culturas nacionais na América Latina foram formadas com contribuições decisivas dos meios massivos, especialmente o rádio e o cinema. Para um povo que estava saindo do meio rural, esse contato era a primeira experiência com o urbano como linguagem. Falando com públicos cada vez mais distintos por sexo e principalmente por idade, os meios massivos contribuíram para reorganizar os espaços sociais. Pensadores como Jesús Martín-Barbero defendem que a televisão não deve se restringir apenas a um assunto de comunicação. A televisão é, antes de tudo, cultural, e deveria ser considerada como relevante nas discussões sobre políticas culturais.
O popular não está apenas em tradições indígenas ou camponesas, mas também naquilo que é urbano e massivo. Na recepção, Martín-Barbero (2003) enxerga resistências, e na diferença cultural estariam as pluralidades. Neste sentido, a luta dos sujeitos se daria hoje no campo da comunicação e não mais em uma lógica unicamente geográfica ou política, contra um país hegemônico. Com nações cada vez mais ligadas entre si através de tecnologias de informação avançadas, a identidade própria e, principalmente, a valorização – e redescoberta – do popular, deveriam ser destaques nos estudos dos processos de comunicação.
Assumindo que o receptor não é um mero consumidor de informações produzidas pelos meios de comunicação, sendo também um produtor de significados, ele propõe um estudo transdisciplinar do campo comunicacional, envolvendo política e cultura, além de outras ciências sociais seria o único capaz de perceber as nuances de seus problemas. O autor propõe três lugares de mediação: cotidianidade familiar, temporalidade social e competência cultural.
No caso da cotidianidade familiar, ele faz uma ponte entre a família como base das audiências nas televisões da América Latina com a importância do núcleo familiar para os setores populares como “situação primordial de reconhecimento”. Entre as estratégias da televisão para falar a esse público está a ressignificação de traços reconhecidos no cotidiano, como a imediatez. Em uma cultura latino-americana essencialmente verbal, a televisão busca estreitar relações interpelando a família e fazendo dela seu interlocutor.
No Big Brother, os protagonistas são pessoas comuns, anônimos cuja missão é interagir com outros desconhecidos. Brigas por comida, pela bagunça do espaço dividido ou por palavras mal interpretadas em festas são assistidas por milhares de telespectadores que veem reproduzidas mesmo que em nível de realidade controlada, uma situação que não causa estranhamento, pelo contrário, remete a uma cotidianidade facilmente reconhecida. Essa banalidade fascina e encanta o público em uma relação que se aproxima da cumplicidade.
Já a temporalidade social distingue o tempo produtivo, do capital, daquele da cotidianidade, marcado pela repetição e onde a contagem é feita em fragmentos. A mídia de massa, então, trabalha com a repetição em suas narrativas, captando a atenção do público. A vida dentro do Big Brother é editada, e momentos-chave são escolhidos, enquanto a sequencia evolutiva de sentimentos e atos dos participantes é extraída de seu desenvolvimento real. Além dos cortes que decidem o que deve ser visto nas edições diárias que vão ao ar na TV aberta, o público é guiado por interferências de narradores, chargistas que brincam com os participantes como se fossem personagens de um desenho infantil, e do próprio apresentador, que contam ao público uma visão das histórias vividas dentro do programa, assemelhando-se ao padrão das novelas.
Ao falar sobre a competência cultural, Martín-Barbero critica a visão de que a televisão seria representante da decadência cultural. Segundo ele, o didatismo insuportável é o risco que a televisão corre ao tentar se elevar culturalmente, se aproximando do paradigma da arte. Ele resume esse pensamento ao questionar se faz sentido ainda persistirem dúvidas teóricas sobre a inclusão da televisão no âmbito cultural, quando na prática é a televisão uma das responsáveis pela reprodução da cultura e modificação nos modos de perpetuação na população.
Janelas virtuais do real
Os reality shows personificam as novas formas de identificação dos sujeitos nas sociedades pós-modernas. Programas como o BBB são movidos pelas engrenagens de uma sociedade exibicionista e consumista, que se mantém vendendo ao mesmo tempo a proposta de que cada um pode sair do anonimato e conquistar facilmente fama e dinheiro; e o prazer voyeurístico de assistir aqueles poucos que alcançam o sonho almejado por muitos.
Em um cenário onde as novas perspectivas de práticas culturais estão inseridas em um complexo ambiente globalizado, as fronteiras entre os gêneros midiáticos também são cada vez mais tênues. Inserido entre dois campos opostos – real e ficção, documentário e novela – o Big Brother passa a ser um novo elemento audiovisual, resultado direto das novas possibilidades tecnológicas, que facilitam o contato entre o público e os personagens midiáticos através de processos interativos.
Com a possiblidade de agir como um ser onisciente, que observa todas as ações dos participantes e julga através do voto por telefone ou pela internet, quem sai ou fica no programa, o telespectador movimenta nesse processo ferramentas de identificação e, principalmente, de diálogo com uma realidade cotidiana ficcionalizada. O grotesco não é mais uma manifestação única do aberrante e escatológico como padrão rebaixador da cultura massiva, e sim uma categoria estética, inserida em um cenário midiático dotado de lógicas próprias, sem juízos de valor.
Ao invés de só causar o distanciamento crítico da realidade, os programas que criam janelas virtuais do real serviriam como uma espécie de catarse menos política e mais social e cultural, onde as narrativas e emoções vividas por terceiros estariam mais próximas dos sentimentos do público do que as novelas e documentários, já que o novo gênero uniria traços dos outros dois.
O atual contexto socioeconômico brasileiro não pode ser ignorado como elemento propulsor do grande alcance de produtos televisivos que fazem sucesso em escala mundial. A “nova classe média”, que há algumas décadas não possuía poder de compra e hoje se insere no mercado de consumo, é alvo das empresas que patrocinam justamente os programas que falam uma linguagem excessivamente visual, mas facilmente entendida e apreendida por uma massa heterogênea.
O espetáculo não está na atipicidade das câmeras que filmam os participantes do Big Brother, mas sim nos romances, diálogos, brigas e situações cotidianas observadas pelo público. A própria vida em si – mesmo que em um ambiente artificialmente montado – é o show da vida. O programa não pretende chegar a lugar nenhum, a não ser nele mesmo.
Referências bibliográficas
CANCLINI, Néstor García. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. 4ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1999.
____________. Leitores, espectadores e internautas. Tradução de Ana Goldberger. São Paulo: Iluminuras, 2008.
_____________. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. 4ª Ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006.
DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1997. Trad.Tomaz Tadeu da Silva, Guacira Lopes Louro.
MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. 9ª ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2003.
SODRÉ, Muniz. A Comunicação do Grotesco: Introdução à Cultura de Massa no Brasil. 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 1973.
WOLF, M. Teorias da comunicação. Lisboa: Presença, 1999.
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Sávia Lorena Barreto Carvalho de Sousa é mestranda em Comunicação da Universidade Federal do Piauí