Em épocas passadas, quando o cardeal Jorge Mario Bergoglio era considerado um adversário político de Néstor e Cristina Kirchner, a tropa kirchnerista (jornalistas, dirigentes sociais e congressistas) não tinha dúvidas sobre a relação entre a Casa Rosada e o então homem forte da Igreja argentina. As diretrizes do ex-presidente eram claríssimas e algumas de suas declarações ficaram gravadas na memória de muitos aliados, entre elas “Deus é de todos, mas cuidado, o diabo também chega a todos, aos que usamos calças e aos que usam batina”. Quando Bergoglio foi anunciado como novo Papa, o governo reagiu inicialmente com frieza, e jornalistas alinhados com o Executivo ficaram desnorteados. Alguns foram muito críticos, em sintonia com a posição dos Kirchner no passado. Outros, mais cautelosos. A cada vez mais profunda polarização política na mídia e na sociedade argentinas contaminou a cobertura sobre o novo Pontífice.
Nas redes sociais, foi evidente a confusão entre os jornalistas que mais defendem o governo Kirchner. O caso de Cyntia Garcia, da Rádio Nacional, é um claro exemplo. No dia em que foi anunciada a escolha de Bergoglio, a jornalista escreveu no Twitter: “Quanto tempo demorará a Igreja para pedir perdão por ter escolhido Bergoglio como Papa? No mínimo, foi cúmplice da ditadura”. Dois dias depois, quando já estava ficando claro que a Casa Rosada buscaria botar panos frios em seus antigos conflitos com o Papa, Cyntia mudou o tom: “Francisco é austero, tático, próximo da realidade e adere à doutrina social da Igreja. Espero que faça um bom papado.”
Os jornais Clarín e La Nación, os mais lidos do país e, também, criticados pelo governo, comemoraram, desde o primeiro momento, a designação de Bergoglio, sem deixar de publicar reportagens sobre as denúncias sobre seu suposto envolvimento em crimes da última ditadura (1976-1983). Já o Página 12, um dos mais alinhados com a Casa Rosada, foi porta-voz de todos os setores que insistem em acusar Bergoglio por suposta responsabilidade no sequestro de dois padres jesuítas, em 1976.
– Outros meios kirchneristas foram mais neutros, como o jornal “Tiempo Argentino”. Na cobertura do novo Papa, vimos, como nunca antes, as fissuras que existem entre meios de comunicação e políticos kirchneristas – diz o presidente da Associação de Entidades Jornalísticas Argentinas, Carlos Jornet.
Depois do susto
De fato, enquanto o Página 12 e alguns programas da TV estatal insistiam em considerar negativa a escolha, outros diários, programas de rádio e TV se mostravam satisfeitos e até orgulhosos pela designação do Papa argentino. Após o encontro entre Cristina e Francisco, no qual a presidente fez rasgados elogios ao Pontífice, o Página 12 destacou a reunião entre ambos e optou por uma manchete mais light: “Foi frutífero e importante”, em referência aos termos usados pela presidente.
Dois dias antes, o mesmo jornal publicara novas denúncias de seu colunista Horacio Verbitsky, autor de vários artigos sobre a suposta participação de Bergoglio no sequestro dos padres jesuítas.
– Com a decisão do governo de buscar uma aproximação com o novo Papa, todos foram obrigados a adequar-se. O jornal não mudou de posição, simplesmente evitou destoar tanto da posição oficial- comentou um jornalista do diário portenho, que pediu para não ser identificado.
Dirigentes sociais como a presidente das Mães da Praça de Maio, Hebe Bonafini, passaram pelo mesmo processo de mutação. No início, a polêmica Hebe questionou duramente a escolha de Bergoglio. Alguns dias depois, enviou uma carta a Francisco dizendo que desconhecia seu trabalho em favelas portenhas e elogiando seu empenho em canonizar padres assassinados durante a ditadura.
Segundo informações publicadas pela imprensa local, depois do susto inicial e do necessário período de reacomodação, o objetivo da Casa Rosada é tornar o Papa Francisco um aliado. Os atritos com Bergoglio devem, definitivamente, ser coisa do passado.
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Janaína Figueiredo é correspondente do Globo em Buenos Aires