Mark Danner é um dos mais inteligentes jornalistas americanos da atualidade. Tem também uma invejável bagagem de repórter – Haiti, nos anos 1980, Iugoslávia nos 90, Iraque nos anos recentes, entre outros lugares ‘onde podemos ver de perto o mal’, como explicou numa entrevista ao site Tomdispatch.com.
Hoje ele escreve principalmente para o New York Review of Books, o jornal literário que, desde a ascensão do bushismo, se transformou numa das melhores publicações políticas dos Estados Unidos, hospedando com regularidade as análises mais cortantes do que Danner chama ‘o estado de exceção’ de Bush.
Professor de jornalismo na Universidade da Califórnia, em Berkeley, ele tem no currículo o clássico The massacre at El Mozote, sobre o extermínio de 750 salvadorenhos por tropas treinadas pelos americanos em 1980, no primeiro ano do governo Ronald Reagan, e o definitivo Torture and truth: America, Abu Ghraib and the war on terror.
Danner faz da tortura um tema de ciência política. O que o bushismo chama eufemisticamente de ‘interrogatório extremo’ representa para o jornalista a expressão extrema do divórcio entre legalidade e poder na América pós-11 de Setembro. A legalidade é o poder sob controle. A tortura é o poder desabrido.
Quando Bush disse, várias vezes, que tinha chegado a hora de ‘tirar as luvas’, na chamada guerra ao terror, ficou implícito que foram as ‘luvas’ – as leis e os princípios da democracia e dos direitos humanos – que deixaram os Estados Unidos vulneráveis a ataques terroristas, interpreta Danner.
Sem as luvas, a tortura legitimada em nome da segurança nacional extingue a premissa de que as pessoas têm certos direitos inerentes, um dos quais é não serem submetidas a tratamento cruel e desumano – uma das ‘liberdades negativas’ de que falava o pensador russo-britânico Isaiah Berlin.
Na entrevista ao Tomdispatch.com, Danner lembra que em abril vai fazer dois anos da publicação das fotos de Abu Ghraib. ‘Quem diria, então’, comenta, ‘que menos de dois anos depois o ‘interrogatório extremo’ se tornaria prática aceitável na CIA.’
No fim do ano passado, o Senado americano aprovou uma emenda proibindo a tortura. Ao promulgá-la, Bush assinou um adendo segundo o qual, na condição de comandante-chefe das Forças Armadas, ele se arrogou o direito de suspender a proibição.
‘A tortura não esteve exatamente ausente das políticas governamentais americanas no nosso tempo’, observa Danner, ‘mas não com o atual grau de envolvimento dos nossos líderes, nem tampouco com a explícita aprovação oficial e a determinação de defendê-la quando revelada e no debate público a respeito.’
Rotina bushista
Outro conceito com que Danner trabalha, ao lado do ‘estado de exceção’ é o do ‘escândalo congelado’.
Uma denúncia se sucede a outra – falsos pretextos para a invasão do Iraque, tortura, prisão ilegal de ‘combatentes inimigos’, espionagem doméstica sem autorização judicial e mais, muito mais – sem nenhuma investigação oficial sobre qualquer delas.
Agora mesmo, por exemplo, a agência Associated Press divulgou um vídeo com especialistas advertindo Bush sobre a catástrofe que o furacão Katrina estava para causar em Nova Orleans – o desmentido definitivo de que o presidente só ficou sabendo da tragédia quando ela era já uma realidade. E daí?
‘Fatos sabidos se confirmam sem parar’, raciocina Danner, ‘e o resultado é que as revelações ficam cada vez menos capazes de indignar o público.’ Esse entorpecimento é o escândalo congelado.
Poucas semanas depois de a ditadura salvadorenha cometer o pogrom de El Mozote, os repórteres Raymond Bonner, do New York Times, e Alma Guillermoprieto, do Washington Post, foram até lá e expuseram o horror cometido. O governo Reagan negou qualquer envolvimento americano – e o desmentido colou, lembra o jornalista, para ilustrar o seguinte:
‘Não é que nos faltem informações. Mas, quando as informações aparecem, o poder político impõe a sua versão. Decide o que é a realidade, apesar das claras evidências em contrário.’
Na América de Bush, essa é a rotina.
Trabalho sagrado
‘É duro para um jornalista admitir isso, porque o modelo de conduta jornalística na nossa era é o Watergate’, elabora Danner. ‘Agora, os jornalistas têm de se haver com uma realidade em que o delito pode ser exposto, e continuar a ser exposto, uma vez e outra e outras mais, sem conseqüências, numa espécie de tortuoso eterno retorno.’
Sim, mas ele mesmo reconhece a queda livre da popularidade de Bush – o que lhe dá ‘algum consolo’.
E, apesar de tudo, insiste, é imensamente importante que os repórteres continuem a reportar, com muita determinação. ‘Porque, no fim das contas, é isso que repórteres fazem e por isso o seu trabalho é tão valioso – tão, se me perdoam a palavra, sagrado. Ele tentam contar o que aconteceu de verdade.’
Ou, como disse certa vez Carl Bernstein, o do Watergatge, citado pelo colunista Clóvis Rossi na Folha de S.Paulo de domingo (5/3), ‘reportagem é a melhor versão da verdade possível de obter’.
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P.S. – Sendo a verdade tudo o que o governo Bush mais abomina, especialmente quando vem à tona, não espanta a matéria do correspondente do Estado de S.Paulo em Washington, Paulo Sotero, na edição da segunda-feira (6/3): ‘Governo Bush lança ofensiva contra jornalistas americanos’. O texto cita reportagem de primeira página do Washington Post da véspera, segundo a qual repórteres que levantam informações confidenciais podem ser processados por espionagem. É o ‘estado de exceção’ de Bush cada vez mais excepcional.