Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

É verdade ou é coisa da internet?

A internet é uma espécie de Ciudad del Este, a cidade paraguaia separada do Brasil pela Ponte da Amizade sobre o rio Paraná. Quem conhece, sabe do que falo: trata-se de uma espécie de zona de livre comércio transformada num verdadeiro caos pelos camelôs, contrabandistas e traficantes de armas e drogas. Ali você encontra do produto mundial de extrema qualidade à imitação e fraude das mais grosseiras.

Uma vez, muitos anos atrás, um comerciante local tentou me convencer de que não existe uísque falsificado no Paraguai. Seus argumentos foram muito convincentes, de modo que eu cheguei até a balançar: “O que os brasileiros não entendem – ele disse – é que o uísque é nossa isca. Vendemos uísque a preço de custo, às vezes até com prejuízo, para atrair os compradores de muitas outras coisas. Mais de 90% do uísque vendido vai para o Brasil, onde fica o casco, a embalagem. Se fôssemos falsificar aqui, teríamos de montar fábricas de embalagens e o custo da operação ficaria tão alto que não poderíamos vender o uísque ao preço que vendemos.”

Contei essa história a dezenas de pessoas. Não consegui convencer uma só delas de que o Paraguai não falsifica uísque. Ciudad del Este, que era chamada de Presidente Alfredo Stroessner, nunca teve qualquer credibilidade, como a internet. Isto é verdade ou é coisa da internet? – a pergunta se repete e é recorrente. Estamos sempre com um pé atrás em relação a qualquer informação que venha da web.

É possível encontrar muito bons artigos no comércio de Ciudad del Este, assim como é possível encontrar muito boas informações na web. O risco de comprarmos gato por lebre numa das duas é muito elevado. O consumo de informações disponibilizadas na web vai sempre exigir um cuidado especial com a qualificação das fontes e muita perspicácia para sondar a sua efetiva veracidade.

Responder a acusação na web é complicado

A credibilidade do papel – que está em baixa talvez porque o uso do papel como meio de transporte de informações também esteja em baixa – vai nos fazer muita falta no momento em que atingirmos a supremacia da web e de seu complexo conjunto de meios na captação, tratamento, divulgação e distribuição de informações. O índice de manipulação dos incautos será muito elevado. E a capacidade da polícia identificar os criminosos virtuais não deve acompanhar o desenvolvimento de ferramentas que permitem a fraude. Isto sem nos referirmos à possibilidade de a fraude partir de governos que tenham autoridade sobre a própria polícia.

Por enquanto, pode-se dizer que o papel complementa a web e dá a ela a credibilidade que precisa para, digamos assim, validar determinada informação que zanzou pelo mundo virtual despertando mais dúvidas do que reação transformadora. É como se o papel tivesse o poder da certificação e determinasse: isto é falso, isto é verdadeiro.

Governos e mesmo instituições são um tanto lenientes diante de denúncias, acusações e críticas que fiquem circunscritas à web. É raro que se movimentem para respondê-las. “É coisa da internet”, já se habituaram a dizer a quem lhes cobra explicações. A reação diante daquilo que é publicado em papel é enérgica e instantânea. Responder a acusação divulgada pela web também é muito mais complicado. A web não cola assunto a assunto. Ao contrário, ela descola uma coisa da outra. Acusação e resposta muitas vezes não se encontram nunca no mundo virtual. Não há qualquer garantia de que a pessoa que consumiu a acusação consumirá também a resposta. Há meios – muito usuais – de fazer desaparecer a acusação do mundo virtual, ou ao menos das primeiras páginas dos sites de busca (Google, Yahoo etc.) na certeza de que a imensa maioria dos internautas só lê as primeiras páginas. Isto talvez explique a leniência.

Sozinha, internet não equaciona problemas

Com o desaparecimento do papel desaparecerá também uma parte considerável do poder transformador da mídia. As sociedades ficarão menos protegidas da manipulação de informações e da fraude. A web não exerce sobre os poderes constituídos o mesmo tipo de pressão exercido pelo papel e, de certo modo, pela TV.

Um bom campo de observação do que vai acontecer quando o papel sair de cena é o da legislação do trânsito no Brasil. A legislação que coíbe a relação álcool-volante tornou-se, recentemente, bem mais rigorosa. Isto só aconteceu porque jornais e TV incendiaram o tema depois da ocorrência de vários acidentes graves ocasionados por motoristas embriagados.

O problema dos acidentes de trânsito no Brasil, que têm matado cerca de 40 mil pessoas e traumatizado ou mutilado outras 500 mil ao ano, tem merecido na web uma cobertura muito mais efetiva e sistemática – por meio de sites, blogs, mídias sociais – do que a de jornais, revistas e TV. O tempo passa, os problemas se agravam, mas a internet, sozinha, não consegue equacioná-los ou resolvê-los. Precisa sempre da “certificação” do papel e da reverberação da TV. Vale observar também que permanecemos longe de uma solução efetiva para os acidentes de trânsito justamente porque jornais e TV não dedicam ao assunto uma cobertura efetiva e permanente.

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Dirceu Martins Pio é jornalista, consultor em comunicação corporativa e autor do livro Caminhos Seguros para o Empreendedor, escrito em parceria com Pedro Cascaes Filho