Em meio a diversos planos de investimentos que visam manter ‘aquecida’ a economia brasileira e seu respectivo ciclo de ascensão recente, como nas infraestruturas de diversos setores, o governo pretende também contemplar, ainda sem saber como, o setor das telecomunicações, altamente lucrativo e oligopolizado por poucas empresas.
Para analisar a situação do momento, o Correio da Cidadania entrevistou o jornalista Samuel Possebon, estudioso das comunicações e editor da revista Teletime. Para o jornalista, os novos investimentos em vista não necessariamente configuram uma nova rodada de privatizações do setor, cujas concessões de prestação de serviço de telefonia fixa e móvel, além de internet, vencem em 2025. O problema maior neste sentido reside, segundo Possebon, na ambiguidade da lei das privatizações de 1998, que deixa margens para dupla interpretação sobre a questão da reversibilidade dos bens da União cedidos à iniciativa privada.
O jornalista alerta, no entanto, para o importante fato de que, a despeito da série de informações e notícias recentes, o governo ainda não tem definido o modelo de execução dos investimentos no setor. Decorre desta indefinição a possibilidade de que os investimentos em uma nova infraestrutura não estejam sujeitos às regras das concessionárias. “Tal política estaria regida pela Lei do Regime Privado e, portanto, sem bens reversíveis, controle tarifário e universalização, entre outros princípios inerentes às regras das concessões”, ressalta Possebon.
Lamenta ainda o jornalista o fato de o Brasil não se constituir hoje, de forma alguma, um ‘player’ global de relevância no setor, uma vez que todas as grandes empresas estão sob controle estrangeiro: “O Brasil é simplesmente uma colônia dos grandes conglomerados internacionais das telecomunicações, sem nenhuma voz ativa no processo”. Do que decorre, ademais, graves implicações financeiras e orçamentárias em um momento de acirramento da crise econômica global: “Se for analisar, todos esses grupos que atuam no Brasil têm dívidas que somadas superam 100 bilhões de euros. Isso os faz pressionarem o Brasil pela remessa de mais dividendos aos acionistas de fora”.
Quanto ao acesso à internet, Possebon ressalta que o governo não tem a universalização da banda larga como meta, deixando ao mercado a missão menor de apenas massificá-la, dentro de suas próprias diretrizes e dinâmicas, inclusive por meio do acesso via celular. “O crescimento apresentado pela banda larga, desde o início do Plano Nacional de Banda Larga, se deu muito mais pelo desenvolvimento do próprio mercado, nos poucos lugares onde existe concorrência”.
A primeira parte da entrevista com Samuel Possebon pode ser lida a seguir.
Falar de comunicações implica ampla gama de setores, temas e polêmicas no Brasil de hoje. Começando por um dos temas que estão amplamente na ordem do dia, a telefonia convencional e celular em nosso país, trata-se de setor recordista nas reclamações dos consumidores e que esteve sujeito a intensa ampliação nas fusões e aquisições de empresas nos últimos anos. Como estão, em sua opinião, os níveis de concentração e centralização na telefonia e como o governo tem lidado com este quesito através de seus órgãos reguladores?
Samuel Possebon – Evidentemente, o mercado de telecomunicações é concentrado em poucos operadores. São grandes grupos e conglomerados. Na telefonia móvel existe um pouco mais de competição, por haver quatro ou cinco empresas (se contar a Nextel) disputando mercado no país inteiro. Quanto ao mercado de telefonia fixa e de banda larga, em algumas cidades, há opções, mas, em outras cidades, não. Em grande parte do país, a única opção de telefonia fixa é a concessionária que também presta o serviço de banda larga.
Sendo assim, existe uma concentração, sem que se veja uma ação efetiva do governo no sentido de reduzi-la. O governo tem procurado estabelecer medidas que fomentem competição em mercados maiores, com múltiplas redes. O governo não vem tendo como alvo levar competição aos cerca de 4000 municípios que não têm opção na banda larga, salvo através do fomento à banda larga móvel, o que é uma alternativa. Porém, não há política específica de implantação de redes concorrentes ou de fomentar a desagregação de tais redes.
Circulam notícias sobre possível desoneração de cerca de 6 bilhões de reais para as lucrativas empresas de telefonia, além da possibilidade de a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) ceder o potencial, até hoje inutilizado, de estoque de fibra ótica da Telebrás às empresas em troca de investimentos (que poderiam atingir 100 bilhões) na expansão da banda larga. O que pensa de tais medidas? Denotam uma nova e definitiva rodada de privatização no setor?
S.P. – Vamos colocar as coisas em perspectiva. Nem todos os assuntos mencionados estão relacionados no mesmo bojo. Primeiramente, a política de desoneração do governo vem sendo pleiteada pelo mercado das telecomunicações há muito tempo. Uma política de desoneração traz um efeito positivo no sentido de estimular a construção de novas redes, mas o interessante de notar nesta política do governo é que nem o empresariado, nem suas empresas, estão satisfeitos com tais desonerações. Isso porque o governo exige contrapartidas que, do ponto de vista deles, não são factíveis. Trata-se de uma redução de impostos que, em tese, traz benefício ao consumidor, seja nas tarifas ou pelas novas redes, mas o mercado de operadoras não está contente. Tanto que existem críticas e se colocam dúvidas a respeito de tal política fomentar efetivamente mais investimentos em redes, tal como se espera.
Outra coisa é a questão dos bens reversíveis. Essa discussão é juridicamente super complicada. Se conversarmos com três ou quatro advogados do setor, sejam advogados de empresas ou de defesa do consumidor, vemos que existem divergências a respeito de como a questão dos bens reversíveis deve ser enfrentada e trabalhada. Quando o governo estabeleceu a regra da privatização, em 1998, deixou, propositalmente, esse assunto meio vago, ambíguo.
Hoje, temos um cenário regulatório pouco preciso, que dá margem a interpretações para um e outro lado. Há quem diga que as redes são patrimônio da União, devendo voltar a ela ao final das concessões; e há quem diga que as empresas viraram donas desses bens reversíveis através das concessões, e que cabe a elas devolverem ao governo em 2025, mediante indenização, os bens que sejam necessários à prestação do serviço de telefonia fixa.
É uma discussão jurídica que está muito complicada. Não dá pra cravar que as empresas estão se apropriando de um bem da União e o governo está entregando um patrimônio público. O que se pode dizer é que o modelo estabelecido em 98 e as regras estabelecidas lá atrás são suficientemente imprecisos e ruins, a ponto de hoje se ter uma discussão jurídica sem posição definitiva. E a bomba vai estourar em 2025, porque, ao chegar lá, uma série de empresas irá à justiça, questionando as regras dos bens reversíveis, com a Anatel sem posição definida a respeito do que cobrar ou não das empresas. Corre-se até o risco – digo isso porque a justiça pode decidir assim – de o governo ter de pagar ainda mais indenizações às empresas, em 2025.
Portanto, a falha está no modelo estabelecido em 1998 e na falta de cuidado e precisão de suas regras.
Por fim, sobre os investimentos de 100 bilhões de reais, de acordo com a informação que temos, não se trata somente de bens reversíveis. Apesar dos boatos, já apuramos que o governo não tem posição fechada quanto a isso. Existem vários modelos que estão em estudo, mas o que parece estar sendo efetivamente discutido é uma política de investimentos em infraestrutura de telecomunicações. Assim como o governo tem estabelecido essas políticas na área de portos, aeroportos, estradas, energia, infraestrutura em geral, também existe uma política de investimento para as telecomunicações em estudo. Mas não sabemos quais serão as regras de tais políticas.
Dessa forma, não é correto, ainda, afirmar que tais medidas configurariam um aprofundamento das privatizações.
S.P. – Acho que não. Esse foi o tom das matérias da imprensa, dando a entender que o governo ia usar os bens reversíveis como moeda de troca no processo. Mas não sei, realmente, se uma matéria publicada na Folha, por exemplo, serviu de balão de ensaio e o governo mudou de posição, ou se efetivamente não se discutia o fato.
A informação que temos é de que os bens reversíveis não estão sendo tratados no âmbito dessa política de investimentos em infraestrutura. O que pode estar sendo debatido, isto sim, é uma política de investimento em uma nova infraestrutura, que não seria sujeita às regras das concessionárias. Tal política estaria regida pela Lei do Regime Privado e, portanto, sem bens reversíveis, controle tarifário e universalização, entre outros princípios inerentes às regras das concessões.
Acredita que tais medidas citadas resultem do fracasso quanto ao objetivo de ampliação da inclusão digital, chegando-se a uma possível universalização, com a extensão da rede de banda larga, em um setor que tem direito praticamente assistido para não cumprir nem mesmo a velocidade contratada na rede banda larga?
S.P. – Com relação à política de universalização da banda larga, simplesmente não existe. O governo não tem essa política hoje. Existe uma política, que inclusive ele ressalta, de massificação da banda larga. Por que é importante falar da diferença entre essas duas coisas (universalização e massificação)? Porque, quando se fala em universalização, deve-se obrigatoriamente vincular esses serviços às características de uma concessão do serviço de telecomunicações. O que implicaria em controle tarifário, universalização do acesso à banda larga e reversibilidade dos bens. Hoje, todas as políticas estabelecidas pelo governo Dilma, desde o começo, têm buscado a massificação da banda larga. Se têm sido políticas efetivas ou não, é outra discussão.
Eu, particularmente, acredito que o crescimento apresentado pela banda larga desde o início de tais políticas se deu muito mais pelo desenvolvimento do próprio mercado de banda larga, nos poucos lugares onde existe concorrência. Um crescimento natural do mercado. Tanto que, se olharmos os números, os acessos decorrentes do Plano Nacional de Banda Larga (PNBL) somam não mais de 2 milhões. O crescimento da banda larga nos últimos anos, concentrado principalmente na telefonia móvel, deve ser atribuído, portanto, ao próprio desenvolvimento do mercado, porque as pessoas querem comprar banda larga, o produto está disponível, houve aumento de renda da população e a internet hoje em dia é vista como algo tão importante como celular e energia elétrica.
Deste modo, ainda existe uma deficiência muito grande para fazer a competição chegar ao Brasil inteiro. Um problema ainda não resolvido e uma dor de cabeça para o governo. A perspectiva é realizar o objetivo através da banda larga móvel, mas aí existe uma série de discussões técnicas e mercadológicas a respeito da viabilidade, pois estamos falando de banda larga com altíssimas capacidades.
Como enxerga o papel que a Anatel tem desempenhado em meio a esta conjuntura?
S.P. – A Anatel hoje é um órgão regulador extremamente alinhado com o governo. Eu diria que nunca na história da Anatel, talvez nos primeiros anos de existência, houve uma agência com tamanha sintonia com o poder Executivo e o Ministério das Comunicações (MiniCom). Isso, por um lado, é positivo, porque obviamente se agiliza a implementação de algumas políticas estabelecidas pelo Ministério. Mas, por outro lado, também é negativo, porque a agência fica a reboque de decisões políticas que são ponderadas pelo MiniCom, muitas vezes contrárias ao interesse do consumidor ou até das empresas reguladas.
A Anatel hoje tem trabalhado praticamente como um órgão implementador das políticas do Ministério das Comunicações, com algumas inovações importantes. Ela está trabalhando um novo conceito de regulação do mercado de atacado, uma medida muito positiva e aguardada há muitos anos, ainda que falte uma efetivação de suas regras. Não sabemos como será na prática. Teve iniciativas positivas na questão do controle de qualidade dos serviços de banda larga, mas, de toda forma, é uma agência que está muito alinhada ao MiniCom, para bem e para mal.
Como está e como pensa que deve ser a participação de estrangeiros no setor de telecomunicações de uma forma geral, nas redes de telefonia, internet e TV?
S.P. – Essa é uma questão que está resolvida desde 1997, quando foi promulgada a Lei Geral de Telecomunicações. Aliás, até antes, em 1995, quando se mudou a Constituição, permitindo que empresas estrangeiras tivessem controle sobre empresas de telecomunicações do Brasil. Falar em revisão desse modelo é complicado porque praticamente todas as empresas do país são controladas por grandes conglomerados internacionais. Temos a Telecom Itália (TIM), o grupo Telefônica (controlador da Vivo), a Portugal Telecom (na Oi), o grupo Vivendi (na GVT) e o grupo America Móvel (na Embratel, Net e Claro).
Portanto, existe uma predominância evidente de grupos estrangeiros no controle das teles brasileiras. Isso traz um aspecto preocupante, visto que as empresas estrangeiras passam por um momento crítico em relação à saúde financeira de suas matrizes. Se formos analisar, todos esses grupos que atuam no Brasil têm dívidas que, somadas, superam 100 bilhões de euros. Essa conjuntura as faz pressionarem, aqui no Brasil, pela remessa de mais dividendos para os acionistas de fora do país, porque os recursos das matrizes ficam mais escassos. O que, obviamente, impõe restrições aos seus investimentos internos. O pior dano, no entanto, e basicamente, é o Brasil ter sido praticamente excluído do jogo das telecomunicações, do ponto de vista de ser um player ativo.
Hoje o Brasil é simplesmente uma colônia dos grandes conglomerados internacionais das telecomunicações, sem nenhuma voz ativa no processo. Assim, as grandes decisões tomadas, do ponto de vista estratégico ou tecnológico, têm pouca ou nenhuma participação brasileira, porque o país vem a reboque, as empresas daqui não são controladas por grupos brasileiros.
Em 2008, com a fusão da Brasil Telecom com a OI, o governo tentou criar um ‘campeão nacional’, pra fazer o país crescer internacionalmente no cenário. A iniciativa se mostrou um fracasso absoluto, tanto que o grupo Oi é controlado por uma empresa portuguesa (Portugal Telecom), o que não é segredo pra ninguém.
Creio ser este, então, um ponto não mais discutível, porque as mudanças na Constituição e na legislação ocorreram há 15 anos. Nova alteração é praticamente inviável, não vejo como acontecer. E hoje o Brasil, infelizmente, é coadjuvante no cenário internacional. Eu gostaria que as empresas brasileiras, ou as que estão aqui estabelecidas, tivessem um pouco mais de voz ativa, mas não vejo isso acontecendo numa perspectiva de curto prazo.
Como vê, nesse aspecto, a Telebrás hoje? Acredita que a estatal ainda possa ter ressuscitado um papel significativo no setor?
S.P. – Não. A Telebrás surgiu com a ideia de fazer concorrência às empresas privadas de telecomunicações. Mas mesmo que os princípios originais tivessem sido mantidos, mesmo que a gestão do Rogério Santana tivesse sido mantida, é impossível desenvolver a Telebrás sem dinheiro e pesados investimentos do governo. É impossível. E o governo não a elegeu como prioridade no desenvolvimento das infraestruturas de telecomunicações do país. Hoje ela é um player secundário, praticamente não incomoda as grandes, cumprindo um pouco daquele papel planejado em 2009, 2010, no PNBL. Mas se trata de um papel muito coadjuvante em relação aos grandes players. Não vejo um cenário de mudança, o que iria requerer uma quantidade de investimentos e operacionalidade que a Telebrás não tem hoje. Pra se dotá-la de tais condições, levaria muito tempo, o que demandaria uma política de governo de longuíssimo prazo.
Além disso, ela acabou virando um receptáculo de tudo que o governo quer resolver e não tem muita ideia de como fazer. Não tem foco de atuação em mercado nenhum. Ora ouvimos a Telebrás colocada como player importante no mercado corporativo, no mercado de provedores de acesso, ora ouvimos que será provedora da infraestrutura da Copa, ora ouvimos que será provedora da infraestrutura estratégica de satélites e cabos submarinos do Brasil. Ouvimos falar até mesmo que será provedora no modelo universalizado de acesso à banda larga. Mas, efetivamente, não há nada acontecendo, a Telebrás é um player muito pouco significativo no mercado brasileiro e não incomoda as empresas.
Quais as perspectivas que se colocam para o setor e, especialmente, para o consumidor diante desse quadro? Discussões mais progressistas ainda poderão ser levadas a cabo por este Congresso?
S.P. – Os debates que tivemos nos últimos dois anos com relação aos direitos do consumidor no setor são importantes. A cobrança por investimentos, seja da parte do governo cobrando as empresas, seja da parte das empresas pedindo ambiente mais favorável aos investimentos, seja da parte dos consumidores exigindo mais qualidade nos serviços, é favorável. Quanto mais mídia e debate sobre o assunto, mais pressão se coloca sobre os reguladores e formuladores de política, além das empresas, pra que prestem serviço de qualidade. Isso é indiscutível.
No entanto, será que no atual cenário das telecomunicações é possível avançar muito além do que se tem hoje? Eu não tenho resposta, acredito que o governo esteja buscando alternativas, a fim de extrair mais do mercado das telecomunicações. Por outro lado, existe uma realidade inegável, de que as empresas estão em situação financeira muito complicada. Principalmente suas matrizes no exterior, mas sem excluir as empresas daqui. Falo de maneira geral, sendo alguns casos muito relevantes.
Tal situação cria um constrangimento, uma limitação. Não existe milagre. Não adianta dizer, do dia pra noite, que a banda larga será rápida, barata, universal e de boa qualidade. Isso não vai acontecer. Só acontece com investimento, planejamento e um ambiente político e regulatório bem definido.
Mas com esse acúmulo de debates, não acredita haver chances de mobilizações sociais significativas em torno aos direitos dos consumidores, como, por exemplo, na defesa da universalização e da modicidade tarifária?
S.P. – Sem dúvida. É fundamental os órgãos de defesa do consumidor e os movimentos de defesa da banda larga universal na sociedade cobrarem isso, sem juízo de valor sobre as estratégias, corretas ou não, ou sobre os argumentos, corretos ou não. Quanto mais discussões sobre tais questões, mais se coloca o debate das telecomunicações no centro das atenções, na mídia, e mais se estabelece uma agenda positiva.
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Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista