O dicionário Aurélio abona auto-engano com uma definição do jornalista José Maria Mayrink, publicada em 04/01.1998: ‘O auto-engano tem uma característica que o diferencia do engano interpessoal. (…) É a mente do sujeito ludibriando a si mesma’.
Quando a imprensa se engana ou se auto-engana demora muito a aceitar que errou. Exemplos não faltam. O leitor experimente contestar um jornalista. Raros são os que se dignam a prestar atenção ao leitor.
Raros são os veículos que têm a modéstia da Enciclopédia Britânica, que examina com atenção toda a correspondência que lhe chega. Graças a atentos leitores, deixou de informar que Jorge Luis Borges é um ‘brazilian writer, born in Buenos Aires’. E incorporou os conhecimentos que o físico brasileiro César Lattes lhe enviava a cada edição do Livro do Ano, retificando ou preenchendo lacunas. E, em contrapartida, aumentava o verbete do próprio cientista.
Aqui as coisas são diferentes. Durante anos o Almanaque Abril informava que o Brasil era banhado em toda a costa oeste pelo Oceano Atlântico! E nas páginas dedicadas à literatura brasileira fazia uma confusão danada mas, quando as críticas foram publicadas neste Observatório, vimos a diretoria da edição desqualificar o autor do artigo na tentativa de justificar-se. E há alguns anos o Almanaque Abril, em vez de retificar a secção, simplesmente a excluiu.
O escritor Domingos Pellegrini Jr. lamenta passar por mentiroso a cada vez que diz que recebeu um prêmio Jabuti, que, por engano certamente (seria demais pensar em má-fé), é atribuído a Milton Hatoum nas orelhas do livro, publicado pela Companhia das Letras! O autor paranaense está certo, a CBL também, mas até agora a editora que se enganou não fez a retificação.
Um clandestino
Na Folha de S. Paulo (domingo, 12/3/06), havia no caderno ‘Ilustrada’ uma chamada desconcertante: ‘Livrarias cobram para dar destaque nas vitrines’. E no olho vinha a informação: ‘Redes como Fnac, Saraiva, Cultura e Laselva estabelecem preços para colocar livros em posições estratégicas; valores vão de R$ 700 a R$ 2.000 por período de 15 dias a um mês’.
Rafael Cariello, Isabelle Moreira Lima e Eduardo Simões abriam a matéria com objetividade: ‘O consumidor não é informado, alguns editores e livreiros negam ou desconversam, mas a verdade é que o destaque dado a muitos livros em vitrines ou no interior de algumas grandes livrarias é comprado. Da mesma maneira que os supermercados fazem com sabão em pó ou saquinhos de batata frita, as livrarias cobram – e os editores pagam – para que os produtos, no caso livros, ocupem posições estratégicas em vitrines, gôndolas ou `pilhas´ que chamam a atenção do público’.
Era uma coisa de que todos desconfiavam, assim como há anos surgem sempre indícios fortíssimos de que a lista dos mais vendidos não espelha a realidade, mas é pouco provável que algum leitor tenha desconfiado do pior: o espaço é comprado nas gôndolas. Pobre literatura brasileira! Vai ver que é por isso que o autor nacional é um clandestino nas livrarias brasileiras e está homiziado nas prateleiras lá do fundo! O círculo vicioso da falta de distribuição, da falta de atenção, da falta de compras por parte de bibliotecas etc., está agora completo: não paga, não é visto. Não é visto, não é lembrado. Não é lembrado, não é comprado e nem lido.
Nas esquinas
A matéria instalou a controvérsia. ‘`Não existe nada disso´, afirma a assessoria de imprensa da editora Rocco. `Todas fazem isso´, garante Ivo Camargo, diretor de vendas da Ediouro’, diz a matéria.
As comprovações prosseguem: ‘Duas das principais redes de venda de livros no país, a Cultura e a Fnac, ambas com lojas em grandes cidades do país, confirmaram à Folha o procedimento. Sergio Herz, diretor da Livraria Cultura, que cobra R$ 900 por cerca de 1m de vitrine (por loja durante 15 dias, envolvendo até dez títulos de uma mesma editora), afirma que o espaço vendido é minoritário em relação ao destinado à indicação editorial da rede. `Se 15% forem comercializados, é muito´, ele diz. `Não é toda a vitrine. Nós separamos partes da vitrine, senão a livraria fica sem liberdade.´’
O leitor achou que era pouco? Leia o que segue: ‘Pierre Courty, diretor-geral da Fnac Brasil, que cobra R$ 2.000 por uma ‘ponta de gôndola’ acompanhada de anúncio no site da rede durante dez dias, afirma que essa política resulta em ganhos para o consumidor. ‘O trabalho da Fnac é o de tentar negociar o melhor preço possível e tentar baratear o livro’, ele diz. As ‘pontas de gôndola’ são as ‘esquinas’ entre as estantes’.
No começo da matéria
Veio de Luciana Villas-Boas, editora da Record, a voz mais lúcida, ao declarar que desconhece a prática: ‘Acho lamentável que essa prática comum das cadeias de livrarias dos EUA se estenda ao Brasil’, disse.
Até pequenas editoras lançaram mão do procedimento. Eliana Sá, da Sá Editora, foi uma delas. Omitindo o nome da rede livreira com quem negociou, declarou que pagou em livros uma ‘ponta de gôndola’, acrescentando: ‘É uma aposta de coexistência necessária, porque tenho uma editora pequena e estou nadando contra a corrente neste ano, lançando menos títulos, best-sellers, com maior tiragem. Decidi que preciso negociar com as grandes redes’.
A imprensa já admite em pés de página que jornalistas que fazem extensos panegíricos a entidades tiveram passagens e hospedagem pagas pelas elogiadas. Pena que o leitor só saiba lá no fim do artigo. Deveria estar no começo da matéria, como ocorre com as agências de despacho. Afinal, fonte e autor compõem a credibilidade do texto.