Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Uma visão de futuro

Numa segunda-feira de manhã em Miami, Flórida, balões infláveis em forma de bocas e corações ainda enfeitam um estúdio vazio de TV da Univision desde a filmagem de Sábado Gigante, dois dias antes. Programa de variedades semanal, com 50 anos de transmissão, o Sábado Gigante se tornou a atração mais antiga da TV americana. Embora a maioria dos americanos nunca tenha assistido ao programa, eles provavelmente o conhecem como sinônimo de TV de língua espanhola – espalhafatoso, barulhento e fascinante, ao estilo da mulher de 1,83 m de sapato de salto altíssimo e legging com estampa de pelo de tigre que atravessa, desfilando, a porta do estúdio para fazer sua aparição no programa matutino de variedades da Univision.

Há cinco décadas, o Sábado Gigante é o destaque da programação da Univision, dominada, de resto, por telenovelas, melodramas que resistem no universo de língua espanhola, apesar de desaparecer das redes anglófonas. No entanto, a mídia hispânica dos Estados Unidos está mudando. Após décadas de importação de novelas – principalmente da Televisa, a emissora mexicana que tem participação na Univision-, os estúdios da Univision em Miami se tornam uma Hollywood hispânica, ao produzir dramas para agradar à sensibilidade em mutação de espectadores cujas famílias migraram para o território ao norte da fronteira duas ou três gerações atrás.

A expansão da comunidade hispânica dos EUA – que cresceu 43%, para 50 milhões de pessoas entre 2000 e 2010, e cuja participação deverá quase duplicar de 16% para 29% da população americana até 2050, segundo estimativas – transformou a TV de língua espanhola. No primeiro trimestre, a Univision foi a quarta maior emissora dos EUA no horário nobre para a faixa de telespectadores de 18 a 34 anos, perdendo para ABC, CBS e Fox, mas à frente da NBC.

Reportagens investigativas

O crescente poder de compra dos latino-americanos, que, segundo prevê a empresa de pesquisa Nielsen, vai crescer do US$ 1 trilhão de 2010 para US$ 1,5 trilhão em 2015, chamou a atenção dos anunciantes. Os gastos por marca na mídia hispânica ultrapassaram por uma década o mercado publicitário como um todo e totalizam atualmente US$ 7 bilhões. Esses valores estão financiando a expansão da Univision e de concorrentes de menor porte, como a Telemundo, além de atrair recém-chegados, como a MundoFox, a rede a cabo lançada em agosto por Rupert Murdoch.

A próxima fase da transformação desse mercado está tomando forma na parte menos vistosa da redação da Univision, que abriga 14 pessoas, concentradas em suas telas. A maioria delas é composta de recém-formados em jornalismo que montam um site de notícias completo. Os membros da equipe, que se destacam pelo fato de estar trabalhando não em espanhol, mas em inglês, são a vanguarda digital da Fusion, uma rede de TV de notícias e estilo de vida em inglês que a Univision pretende lançar no fim do terceiro trimestre, em joint-venture de vários milhões de dólares com a ABC, emissora controlada pela Disney. Cerca de 300 novos ingressantes deverão se reunir a eles em julho num novo prédio em Miami para fornecer programação para latinos falantes do inglês e outros jovens americanos “da geração Y” (os nascidos entre o começo da década de 1980 e 2000) com gostos semelhantes.

Para a ABC, a maior emissora dos EUA em termos de receita, a Fusion representa uma tentativa de capitalizar o que Chiqui Cartagena, vice-presidente de marketing da Univision, descreve como “a maior explosão de público jovem desde o 'baby boom'“. Ben Sherwood, presidente da ABC News, que se criou assistindo à estação KMEX, da Univision, em Los Angeles, diz sobre a Univision: “É incrível o domínio que ela tem”. A emissora alcança, regularmente, 96% dos lares dos hispano-americanos, dos quais cerca de 70% não assistem a nenhum outro noticiário de TV. Mas, se a Univision entra com seu cobiçado público jovem para o empreendimento conjunto, a ABC entra com seu formidável poder de distribuição e de reportagem de partes do mundo cuja cobertura a Univision não poderia custear ou justificar.

Para a Univision, o novo canal marca tanto uma expansão quanto uma mudança radical de direção. Por muitos anos seus executivos disseram aos anunciantes que quem quisesse atingir a parcela mais dinâmica da população americana tinha de fazer isso em espanhol. “Essa é uma posição muito confortável; não é verdade”, diz Isaac Lee, de 42 anos, presidente da Univision News. “Acho importante influenciar as pessoas que serão o futuro do país. A língua principal delas é o inglês, não o espanhol.”

No centro do novo canal estão o noticiário – e Lee. É difícil comparar a Univision News com qualquer outro concorrente americano. A emissora diz que seu espectador médio tem 44 anos, quase 20 anos menos do que a média do público de programas noticiosos em inglês. Num momento em que o noticiário de TV alcança públicos cada vez menores, em que a Fox News e a MSNBC pregam para os partidários e a CNN instaura nova direção para reverter a queda dos índices de audiência, a Univision News experimentou crescimento com um jornalismo feito de contundentes reportagens investigativas, documentários internacionais e de defesa do consumidor.

No início do mês, ganhou o prêmio Peabody por sua investigação das mortes causadas no México pela polêmica operação secreta “Fast and Furious” do governo Obama, que permitiu que armas rastreadas pelas autoridades americanas atravessassem a fronteira “a pé”, por meio de compradores intermediários que as levariam, e às autoridades, aos grandes traficantes de armas e chefes de cartéis de drogas.

Bolha de 2008

Daniel Coronell, vice de Lee e destacado colunista colombiano que se exilou em Miami em 2005, diz que a Univision era “uma empresa com uma longa tradição de evitar problemas”, que muitas vezes ficava mais satisfeita em traduzir reportagens de outros do que em ir atrás das próprias. Mas isso mudou em dezembro de 2010, com a nomeação de Isaac Lee. Aos 23 anos, como repórter investigativo de TV, ele informara que o presidente colombiano da época tinha recebido recursos do cartel de Cali. Foi demitido imediatamente. “Ter um governo na sua cola na América Latina não é das melhores coisas do mundo”, afirma.

Mas Lee se recuperou e se tornou, aos 25 anos, editor da “Cromos”, a revista mais antiga latino-americana. “A verdade é que ninguém mais queria [trabalhar lá]”, conta. Mas, com o jornalismo investigativo e proezas como articular sessões de fotos com a supermodelo Claudia Schiffer usando roupas de estilistas colombianos, Lee aqueceu a esmaecida circulação do título. Aos 26 anos, tinha se tornado editor da “Semana”, a maior revista da Colômbia, divulgando matérias exclusivas sobre corrupção que levaram a renúncias por parte de ministros, antes de montar um portal de notícias, no boom das pontocom, do fim da década de 1990. O portal foi desmembrado e vendido à Terra, um dos nomes de sucesso da internet na época. “Eles pagaram uma quantia absurda. Absurda”, reconhece.

Lee partiu para um site de notícias políticas e até para a direção cinematográfica, mas o lançamento da “Poder” e da “Loft”, dois títulos atraentes para leitores de língua espanhola na América Latina e nos EUA, aumentaram seu interesse pelo mercado hispânico americano.

Embora Lee tenha atualmente uma ambiciosa rede para administrar e mais uma para lançar, ele me telefonou do México algumas semanas após nosso encontro em Miami. Estava lá chefiando uma equipe da Univision que investiga denúncias de corrupção contra um dirigente sindical. “Quando não faço reportagem in loco, não curto a vida, para falar a verdade”, explica.

Atualmente, Lee mora no bairro de Coconut Grove, em Miami, densamente povoado por artistas, numa casa pequena, pintada de branco, cheia de livros e obras de arte. Sentando-se para almoçar perto de uma piscina, ele desfila a escala de suas ambições. Sua tarefa, diz ele, é explicar para os EUA que “o futuro da comunidade hispânica não diz respeito apenas à comunidade hispânica; é do máximo interesse dos Estados Unidos”. O tamanho dessa comunidade leva à conclusão de que “se esse pessoal não vai bem, nosso país não vai bem”.

O fato de que muitos dos telespectadores da Univision enfrentam dificuldades econômicas ajuda a explicar sua fidelidade a esse serviço noticioso, diz Sergio Bendixen, pesquisador contratado pela rede pela primeira vez em 1985, que ajudou a assessorar a campanha de 2012 do presidente Barack Obama sobre as características do eleitorado hispânico. Com um contingente estimado em 11 milhões de imigrantes ilegais de origem hispânica vivendo atualmente nos EUA, diz Bendixen: “É uma comunidade que se sente acuada. Para a maioria das pessoas, a notícia é uma coisa interessante, mas não o ajuda a concluir se você tem ou não de ficar no seu apartamento, mandar seus filhos à escola ou ficar no país”.

Esse relacionamento, segundo os executivos da Univision, é o que incute senso de missão à Univision News para investigar a supressão de direitos do cidadão aos eleitores, promover campanhas de educação financeira e conclamar os latinos a se fazerem ouvir na cabine de votação.

Keith Summa, ex-produtor da ABC News e ex-repórter investigativo da CBS News que agora administra as parcerias da Univision na área de notícias, diz que a emissora se tornou um serviço confiável para as comunidades próximas a seus estúdios em Miami, Nova York, Los Angeles, Chicago e Houston. “Nossas afiliadas locais recebem telefonemas o tempo todo, nos quais as pessoas perguntam: 'A que médico ou escola devo enviar meu filho?'“, relata.

“Seremos a maior minoria dentro de alguns anos, portanto a formação dos membros hispânicos da sociedade americana será parte decisiva para manter a liderança mundial dessa democracia”, diz Coronell.

Habitualmente usando jeans, camiseta e óculos grossos, o barbado Lee consegue ao mesmo tempo manter a imagem de o último romântico do setor noticioso de TV e de executivo menos sentimental. “Na primeira semana [na Univision], demiti o número dois, três, quatro, cinco e seis”, diz. Os que contratou e promoveu estão fazendo um volume 70% maior de matérias por semana com os mesmos recursos, acrescenta.

“Sofro de um insuportável senso de urgência”, afirma. “Não sou uma pessoa bem-educada. Não gostaria de ser meu chefe.” Ele parece ter conquistado a confiança de seus chefes e subalternos, no entanto. “Ele tem um tipo de força da natureza”, observa o principal executivo da Univision, Randy Falco. “Se ele fosse um vendedor de sapatos, eu estaria vendendo sapatos neste momento”, acrescenta Summa. “Não dá para dizer não para Isaac”, corrobora Sherwood; “ele é um mágico que torna possível o impossível.” Lee não revela seu orçamento, mas membros do setor suspeitam que é de aproximadamente US$ 50 milhões ao ano, cerca de 10% da verba de uma grande rede de transmissão de notícias.

Isso torna a Univision News “ligeiramente milagrosa”, diz Andrew Heyward, ex-executivo da CBS News que assessora a empresa em sua produção de TV e digital em língua espanhola. “Qualquer pessoa do mundo noticioso em inglês fraquejaria diante do que se espera da Univision News, considerando-se seus recursos limitados.”

Lee afirma que não se preocupa muito com os resultados financeiros (“se eu fracassar, eles podem me demitir”), mas acrescenta que a margem de lucro de sua divisão está crescendo à medida que se expandem seus índices de audiência. As margens são importantes na Univision, uma das maiores compras por empresa de aquisições de participações da bolha que estourou em 2008. Ainda sobrecarregados pelas dívidas geradas por aquela transação de US$ 12,3 bilhões, fechada em 2006, seus proprietários não podem se permitir a falência de um novo empreendimento.

Público jovem

O lançamento da Fusion não é tarefa fácil, destaca Coronell. Muito além de criar uma nova rede 24 horas e de operar uma joint-venture, isso implica deixar de trabalhar em espanhol para trabalhar em duas línguas, “o que é difícil para muitos de nós”, comenta, rindo. Destacar-se em relação a outros canais de língua inglesa também será trabalho espinhoso. A Univision e a ABC dizem que a Fusion vai se concentrar “nas questões mais relevantes para os hispânicos dos EUA”, como economia, entretenimento, música, culinária, imigração, cultura popular, educação, política e saúde.

Lee se rebela diante das tentativas dos concorrentes em língua inglesa de apelar para os públicos hispânicos, dizendo que eles dão pouca cobertura a assuntos como imigração. “Eles pensam que ter uma voz hispânica é ter um repórter com sobrenome espanhol”, diz. “É inacreditável como os gringos acreditam que podem ter um espírito latino. Eles acabam ofendendo e menosprezando a comunidade. Somos [retratados como] jardineiros e empregadas domésticas.”

Embora muitos analistas duvidem do apetite dos americanos por notícias estrangeiras, a Univision e a ABC apostam que os americanos falantes de inglês se interessam pela história de crescimento econômico da América Latina, pela Venezuela pós-Hugo Chávez e pelo papa argentino, e recorrerão à Fusion em busca da cobertura que não encontram em outros canais. “Os americanos estão ficando mais latinizados e os latinos estão ficando mais americanizados”, argumenta Falco.

“Se for bem-sucedido, esse empreendimento vai criar valor real para a Disney-ABC e para a Univision”, diz Sherwood, que também está otimista com sua divisão de notícias em língua inglesa. “Questiono a premissa de que nossos melhores dias ficaram para trás”, acrescenta. “Vemos um futuro real na rede de notícias.”

O público latino oferece à Fusion e à Univision uma grande vantagem, em especial. “Nossos telespectadores estão integrados à atividade e ao desenvolvimento econômico dos Estados Unidos há, pelo menos, duas décadas a mais do que a média dos telespectadores das redes em inglês”, diz Coronell. Os telespectadores hispânicos jovens, em outras palavras, sobreviverão aos outros públicos de redes de notícias. 

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Andrew Edgecliffe-Johnson, do Financial Times