Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Anorexia e lipoaspiração na Capadócia

De repente, a esqualidez coletiva, a magreza como exercício de descartabilidade. O suicídio assumido publicamente pelo antigo Estadão a partir da segunda-feira (22/4) foi compartilhado com uma sensação de alívio pela concorrência. O novo figurino Ersatz – sucedâneo inferior – caiu do céu, presente dos deuses. É extremamente conveniente aos diários ditos nacionais e regionais, finalmente desobrigados de competir em qualidade e densidade.

As elites endinheiradas não gostam de jornais opulentos, substanciosos, preferem a sublime dramaturgia das telenovelas, fingem que são informadas pelas mídias sociais e adoram desfolhar revistas com as irresistíveis citações proferidas por celebridades de shortinho.

Já as empresas jornalísticas, incapazes de multiplicar talentos e há décadas apostando em estrelas fatigadas pela rotina da submissão, começaram a afiar bisturis e guilhotinas, ávidas para cortar custos e gorduras.

Sem alma

Mesmo que a internet não apareça como vilã dessa crise, a verdade é que nossa economia não tem fôlego para sustentar uma imprensa bem nutrida, criativa, variada, estimulante.

Aquela sucessão de anúncios de página inteira vendendo a felicidade imobiliária dá prejuízo, as construtoras e incorporadoras gozam de tremendos descontos, condenadas a servir de atração para o negócio de classificados tal como as montadoras de carros que só conseguem escapar da anorexia com o corte no IPI.

Nossa indústria de eletrodomésticos esgotou-se, os aparelhos são os mesmos há anos, os cadernos do último fim de semana só ofereciam celulares e tablets. Razão pela qual nenhum jornal se arrisca a denunciar o desastroso serviço das operadoras de telefonia e provedoras de acesso digital.

A autoflagelação do antigo Estadão é apenas o começo de uma perigosa desertificação jornalística. Se até agora se gastava no fim de semana pelo menos duas horas para ler a safra de jornais e revistas, o tempo de leitura vai se reduzir substancialmente. Pouco adiantará esticar os infográficos, dramatizar os episódios policiais e as abobrinhas oriundas da TV.

Nosso jornalismo esgotou-se, patina na desimportância, incapaz de reencontrar as fontes de vitalidade e renovação. Nem a antecipação do embate presidencial conseguirá aumentar a circulação ou a receita da mídia impressa porque onde não há diversidade, não há surpresas. O inesperado não se sustenta automaticamente.

Consolo da telinha

Ao anúncio da estagnação doméstica somou-se o súbito falecimento da edição sul-americana do El País,impresso no Brasil e na Argentina. A subsidiária local da PRISA avisou laconicamente que não aceitará renovação das assinaturas, saiu do mercado. Danem-se os viciados em jornalismo inteligente.

Foi suprimido o privilégio oferecido a alguns leitores brasileiros de ler diariamente um diário global impresso localmente. Mesmo que o exemplar custasse três vezes mais do que os concorrentes tupiniquins valia a pena, dava dimensão à fragmentação digital.

A catástrofe que desabou sobre a Espanha foi responsável pelo abate do EP/Brasil, mas é preciso admitir que o brasileiro é cada vez mais monoglota, provinciano, apesar de voar ao exterior em todos os feriadões. Se é para ler um veículo “estrangeiro”, melhor que seja em inglês – “pega bem”, mesmo que a compreensão seja nula. Ou quase.

Imperioso constatar que a edição sul-americana do diário espanhol estava sendo editada de forma burocrática. Inapetente. Na verdade, para o brasileiro não existe uma América do Sul, o bolivarianismo cansou. E a Espanha, matriz de uma civilização, apesar de conservar o velho brilho cultural está enfiada num buraco não apenas econômico, mas igualmente institucional. Evaporou o charme daquela monarquia liberal que, com tanta ousadia, fez a transição do fascismo para a democracia. Desgraçadamente, o EP/Brasil teve a mesma sorte.

Em compensação, fomos transferidos para uma Capadócia moral graças ao talento dos autores do pastelão das nove, Salve, Jorge. Merecemos.