Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

No estilo do Amapá

Não causa espanto a ninguém a proeminência da família Borges no espectro das comunicações no Amapá. Os Borges, políticos do tipo tradicional, são conhecidos no extremo norte do país pelo seu apetite por cargos e meios de comunicação e, também, pela fisionomia peculiar: são dotados de olhos grandes e olheiras profundas de onde deriva o apelido de zolhudos. A primeira concessão de rádio FM que Macapá teve (fora a Rádio Nacional), no final da década de 1980, foi deles: a Rádio Antena 1 FM. Lembro como se fosse hoje a alegria que todo mundo sentiu pelo fato de Macapá passar a ter o que outros estados já tinham há muitos anos: emissoras de rádio aparentemente sintonizadas com a realidade local. Ninguém se deu conta na época que aquela rádio não vinha para prestar serviços à coletividade, mas para servir aos interesses dos seus proprietários.

O início do império de comunicações da família Borges, que envolve hoje quatro emissoras comerciais (Antena, em Macapá; Rádio Santana FM, Mazagão FM e Oiapoque FM), uma emissora de televisão (TV Tucuju, que retransmite a programação da Rede TV!) e uma rede ilegal de rádios comunitárias em todo o interior do estado, não foi obra do hoje senador Gilvam, mas de Geovani Borges, o primeiro do clã a conquistar mandato eletivo. Geovani, eleito deputado federal em 1982 e reeleito em 1986, beneficiou-se, como inúmeros deputados federais no mesmo período, do desejo do ex-presidente José Sarney de permanecer no poder por mais um ano. A votação dos cinco anos de mandato para Sarney permitiu que parlamentares barganhassem seus votos em troca de emissoras de rádio e televisão.

Furor da Anatel

Com o advento da lei das rádios comunitárias, o já senador Gilvam Borges, irmão de Geovani, percebeu a oportunidade de utilizar um instrumento que deveria servir à comunidade para ampliar seus tentáculos sobre os meios de comunicação. Exemplo cabal disso é o programa O estado é notícia. Nele, seu irmão, o jornalista Reginaldo Borges, apresenta um programa pela Antena FM que é transmitido em cadeia para os 16 municípios através de uma rede de rádios comunitárias, coisa que a lei veda expressamente. Ou seja, rádio comunitária não pode fazer rede, mas a gerência da Anatel em Macapá não vê, não ouve e, ao que tudo indica, faz muito pouco para garantir o respeito às leis.

Um outro exemplo de como a fome por meios de comunicação fez a família Borges invadir o terreno das rádios comunitárias pode ser observado no município de Laranjal do Jari, no sul do estado. Lá funcionava a rádio comunitária Juliana FM – que hoje transmite sob a égide de uma lei municipal de radiodifusão comunitária. Para implantar uma alternativa de comunicação amigável a si e ao seu partido, o senador Gilvam se uniu a um grupo local criando uma associação de radiodifusão comunitária no município. Finalmente, o parlamentar usou de seu poder em Brasília para impedir a concessão da Rádio Juliana, privilegiando a que era então ligada ao seu grupo político.

No Laranjal esse foi o enredo, no arquipélago do Bailique tudo indica que será igual. A rádio comunitária do arquipélago, não obstante prestar um serviço inestimável àquela comunidade isolada – 12 horas de barco da capital – vem sendo fiscalizada com furor pela Anatel. Fúria esta, vale realçar, que não encontra paralelo na docilidade em relação à continuada transgressão da lei perpetrada pela família do senador Gilvam Borges, que forma redes ilegais no Amapá há anos.

Interesses pessoais

Uma destas fiscalizações, como era de se esperar, redundou no lacre dos equipamentos da rádio pela Polícia Federal. A rádio comunitária do Bailique, apesar de ter requerido concessão de funcionamento em 1999, até hoje aguarda providências do Ministério das Comunicações. O absurdo é tamanho que um juiz federal ordenou que a rádio voltasse a funcionar visto que a comunidade não pode ser penalizada pela vagarosidade – eu acrescentaria seletiva – das instituições responsáveis.

Enquanto o Ministério das Comunicações dorme, a torre da Telemar no arquipélago, que é alta e adequada e onde ficava originalmente a antena de transmissão da rádio comunitária, foi vendida ao senador Gilvam Borges. Por que cargas d’água um senador da República foi comprar uma torre de transmissão no distante arquipélago do Bailique? Dono da torre, a primeira coisa que o senador fez foi mandar retirar a antena da rádio comunitária que lá no alto ficava hospedada. A razão alegada para o despejo? É que a torre será desmontada e colocada em outra comunidade onde funcionará a futura rádio comunitária do senador Gilvam, que vem para substituir a lá existente, gerenciada pelo Conselho das Comunidades do Bailique, órgão autônomo que representa as mais de 40 comunidades existentes no arquipélago.

Vejam que não existe coincidência em nenhum lance dessa trama. O golpe final que revela claramente quais são as intenções da família Borges com relação ao espectro das comunicações no Amapá foi descoberto recentemente. Como é de conhecimento público, Gilvam não foi eleito no último pleito, levou o assento no tapetão e por isso não faz quatro meses que ele está no Senado da República. Mesmo assim, o neo-senador não perdeu tempo, procurou e achou um assento na Comissão de Comunicação Social do Senado e já é o relator do processo que vai votar a concessão definitiva a ser concedida para a primeira e única rádio verdadeiramente comunitária de Macapá. A velocidade em encontrar espaço na Comissão de Comunicação mostra o que todo mundo já sabe: o mandato parlamentar, neste caso, não serve para representar interesses coletivos, mas para defender interesses pessoais do coronel eletrônico amapaense.

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Advogado, mestrando em Ciências Políticas da Université de Montréal, Canadá, articulista da Folha do Amapá