Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Ruy Mesquita, o último grande ‘publisher’ brasileiro

Dá para contar nos dedos de uma mão do Lula as vezes em que encontrei Ruy Mesquita – ou melhor, Dr. Ruy – no Estadão durante os onze anos em que trabalhei lá. Eu o vi em diversas oportunidades, mas conversamos pouquíssimas vezes, reflexão que agora me traz um grande arrependimento. Apesar de raras, foram sempre situações muito intensas (de minha parte, pela ansiedade) e leves, simpáticas (da parte dele, porque ele era simpático mesmo).

Ouvi com tristeza que Dr. Ruy morreu ontem, aos 88 anos, vítima de câncer. Com a morte do nosso último grande publisher, vira-se uma página na imprensa brasileira.

A primeira vez foi particularmente especial. Eu era diretor da TV Estadão na época, lá por meados de 2008, ocasião em que o jornal fez um especial sobre os 40 anos do AI-5, ‘1968, Mordaça no Estadão’. Além de uma exposição multimídia na Cinemateca e cadernos e cadernos dedicados ao tema no jornal, dei minha contribuição ao dirigir um minidocumentário sobre o assunto.

Dr. Ruy preferiu não dar entrevista para o vídeo, por isso recorri a outros personagens importantes na história do jornal, como o ex-editor-chefe do Estadão, Oliveiros S. Ferreira, o então editor do Jornal da Tarde, Fernando Mitre, e o repórter Antonio Carvalho Mendes, carinhosamente apelidado de ‘Toninho Boa Morte’ por cuidar durante anos da coluna de falecimentos, entre outros profissionais.

Motivo de orgulho

Com o vídeo pronto, tomei coragem e levei a ele um DVD – queria ter certeza de que Dr. Ruy veria o nosso trabalho, o que poderia não acontecer se eu lhe enviasse apenas o link no portal. Na verdade, foi uma desculpa para trocar algumas palavras com ele a respeito de um trabalho que me deu muito orgulho, um registro de um episódio muito falado e pouco documentado da história da imprensa brasileira.

Fui até a sala do Dr. Ruy, que ficava ao final de um corredor mal iluminado, repleto de quadros com retratos de jornalistas do Estadão que hoje são mais conhecidos da população como nomes de ruas em São Paulo. Apesar do carpete antigo, um pouco de cheiro de mofo até, admito que eu adorava caminhar por aquele corredor. Em homenagem ao meu avô, que era fã de Os Sertões, confesso que até fazia uma reverência com a cabeça quando passava na frente do retrato de Euclides da Cunha – mas só quando eu estava sozinho, claro. Não, não sou louco. Era apenas um ingênuo ritual que fazia sentido para mim, vai saber por quê.

Pedi à secretária se eu podia entregar o DVD para ele em mãos. “Mas posso retornar outra hora, dona Maria de Lourdes, longe que mim querer incomodar, não sei se ele está ocupado agora, imagine, volto depois…” “Ah, vem aqui, ele vai adorar.” Uma mulher muito simpática, que mostrava uma invejável intimidade com o chefe, provavelmente fruto das dezenas de anos que trabalhara naquela função.

Bati, abri a porta, entrei. “Dr. Ruy, tudo bem? Meu nome é Felipe Machado, trabalho aqui.” Ele estava sentado, óculos na ponta do nariz, bigodinho meio ralo, meio grisalho. Olhei em volta rapidamente, muitos livros, algumas capas importantes do jornal enquadradas, muita coisa em cima da mesa. Eu estava nervoso: quase sofri uma overdose de respeito. Falei que era da TV Estadão, que havíamos feito um pequeno filme contando a história dos censores no jornal, das receitas de bolo no JT, da publicação dos Lusíadas no Estadão. Ele me perguntou: “Foi você quem fez um estúdio de TV na redação?” Gelei. Será que aquilo se tornaria uma bronca? Seria eu demitido pelo dono do jornal? Respondi que eu era, sim, o responsável pela área de vídeos no site, mas o projeto havia sido idealizado por meus chefes na época. O estúdio era usado para entrevistas, debates, comentários que eram filmados e publicados na área de vídeos do site. Ele me olhou sem falar nada, como se eu fosse um ET islandês falando em sânscrito. Foram cinco segundos, mas pareceram cinco anos.

“E esse filme, o que é?”

Expliquei o que era o DVD, ele olhou a capa, virou, olhou a contracapa. “Parece interessante.”

Estendeu a mão, eu o cumprimentei. Deu um sorriso, agradeceu o DVD. E eu entendi que era a senha para ir embora. Em direção à porta, dei uma última olhada geral na sala, como eu gostaria de passar a tarde inteira conversando com ele.

Alguns dias depois, a Maria da Lourdes me chamou na sala dela. Pensei ‘agora vou mesmo ser demitido, é certeza’. Ela me disse que Dr. Ruy havia gostado muito do DVD, mandado um ‘parabéns para toda a equipe’.

Acabei ficando amigo da Maria de Lourdes, quando nos encontrávamos ela sempre comentava minha coluna que saía aos domingos no Jornal da Tarde (e hoje sai no Diário de S. Paulo). Fiquei orgulhoso.

Palavras e ideias

Um dia, do nada, ela me chama de novo e diz: ‘hoje é aniversário do Dr. Ruy, 85 anos, teremos alguns convidados aqui para uma festa surpresa. Você pode chamar o seu pessoal para a gente fazer um filminho?’

Mas é claro que sim, dona Maria de Lourdes. Desmarquei tudo o que a gente tinha agendado e mandei a galera para a sala onde seria a festinha. Lá já esperavam por ele alguns jornalistas, membros da família Mesquita e alguns personagens mais conhecidos do grande público, entre eles o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

Quando Dr. Ruy entrou, numa cadeira de rodas, cantamos ‘Parabéns a você’ como se ele fosse um garoto de 15 anos, não 85. Tive que me conter para segurar as lágrimas, não sei por quê. Não era uma pessoa com quem eu tinha um contato pessoal que inspirasse tamanha emoção, nem era um ídolo de infância como John Lennon ou Stanley Kubrick. No entanto, algo ali me tocou o coração de uma maneira bastante emocionante.

Estava diante de um homem que não era feito de carne e osso, mas de papel, tinta, verdade. Era um homem que carregava em si o peso de sua própria convicção, de suas escolhas, de sua firmeza. Era possível concordar ou não com as ideias do Dr. Ruy, mas era impossível não ter interesse em ouvi-las e, de alguma forma, aprender com elas.

O vídeo da celebração pode ser visto aqui, mas, embora carregado de sensibilidade, nem de longe reflete o que estava acontecendo naquela sala. Eu olhava para o Dr. Ruy e pensava na trajetória do Estadão, na democracia brasileira, na história da imprensa mundial. Claro que ali estava também um personagem poderoso (embora fisicamente frágil, devido aos problemas de saúde), o dono de um grupo de mídia importantíssimo e muito influente, um homem rico. Mas isso não era o que saltava aos olhos, ali o foco era outro. Havia, por trás daqueles olhos cansados pelo tempo, um ser humano que deu a vida para levar ao povo a história do que, tenho certeza, ele acreditava que era o melhor para o nosso país.

Celebrando seus 85 anos, eu e outros privilegiados presentes ao evento estávamos diante de um homem real, mas, ao mesmo tempo, lendário, um personagem que ajudou a construir a democracia brasileira palavras e ideias. Tenho certeza de que, não apenas o Brasil, mas o mundo seria muito melhor se existissem mais homens como Ruy Mesquita.

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Felipe Machado é jornalista