Certa noite do começo de 1964, tempos antes do golpe, Ruy Mesquita foi o entrevistado de um programa da tevê precursor do Roda Viva. Lá pelas tantas, falou longamente de meu pai, Giannino, tinha-o como seu mestre de jornalismo além de amigo insubstituível. No dia seguinte, mandei uma carta para o Estadão endereçada ao Ruy, quis deixar por escrito a minha comoção.
Ruy, segundogênito de Julio de Mesquita Filho, começou no jornalismo como redator da seção Internacional do jornalão, comandada por meu pai, que acumulava o cargo de diretor do arquivo por ele mesmo recém-criado. Foi o começo da reforma do Estadão, que se completaria pela mão de Claudio Abramo, anos depois nomeado redator-chefe. Eu ia visitar meu pai, ainda na sede da Rua Barão de Duprat, no reduto árabe a cercar a baleia adernada do Mercado Municipal em meio aos perfumes de cânhamo e gergelim. Ruy tinha 22 anos, eu 13, meu pai 42.
A amizade nasceu ali, e nasceu meu afeto por Ruy e sua família, a despeito das reviravoltas da vida. Dezessete anos depois, mudei-me da Editora Abril, onde dirigia a Quatro Rodas, para o Estadão, chamado a chefiar a pequena equipe de uma Edição de Esportes. Saía nas noites de domingo e permanecia nas bancas até a segunda-feira. Foi lançada no começo de setembro, meu pai, doente havia meses, morreu no fim de outubro, aos 59. Sei que Ruy sofreu muito com a perda, assim como sei que a memória do meu pai foi decisiva para a minha autonomia de voo na feitura do Jornal da Tarde, enfim lançado em janeiro de 1966.
Sambas lembrados
Aludo à liberdade deação de que gozei do ponto de vista formal, em um vespertino destinado a inovar graficamente e a conferir qualidade literária ao texto. No campo das ideias políticas, valiam obviamente as da família, e eu as respeitei com lealdade, embora deste ponto de vista nosso pensamento não coincidisse. Mas os melhores patrões da minha vida de jornalista mereciam. Quando deixei o Jornal da Tarde para assumir a direção da equipe fundadora de Veja, Ruy deixou sobre a minha mesa um bilhete. “Você poderá voltar sempre como o filho pródigo”, escrevia. Ele também preferiu deixar no papel a emoção daquele momento.
O jornal atingiria o ponto de fervura anos depois, quando eu já não estava lá. De minha parte, parti para uma temporada áspera e ao mesmo tempo exaltante, a me permitir liberdade de ação também política enquanto a forma era em Veja nitidamente influenciada pelosnewsmagazines americanos. Os eventos nos distanciaram, mas eu nunca esqueci aquele Ruy.
Foi cidadão íntegro e inquieto, de forte temperamento, nele cantava, entre o fígado e a alma, sobretudo a emoção. Foi também entre os representantes de famílias proprietárias aquele mais empenhado e mais dotado, na minha visão, para a prática do jornalismo. Capaz de empolgar-se com a Revolução Cubana nos seus primeiros momentos, foi o único entrevistador brasileiro de Fidel Castro, recém-vitorioso ao descer a Sierra Maestra. Em companhia de Claudio Abramo, cobriu com inteligência e isenção a Conferência Econômica da OEA de 1961, realizada em Punta del Este. Ali brilhou Che Guevara: à testa da delegação cubana, fez um discurso notável enquanto tomava Coca-Cola. E ao Che, assassinado na Bolívia seis anos depois, o Jornal da Tarde dedicou uma edição memorável. Explícita, em Ruy, a inclinação romântica.
Lula não deixou de interessá-lo como líder sindical inédito, na qualidade de antídoto ao peleguismo. De todo modo, prefiro lembrá-lo, neste momento de funda melancolia, como aquele que me visitou em Turim em 1957, quando eu trabalhava na redação de La Gazzetta del Popolo. Recordo-o moço, no vão da porta. Acenava. No dia seguinte, fomos juntos a Milão, onde eu expunha minhas telas brasileiras. Na volta de carro cantamos com perfeita afinação. Além de tudo, ele era então um notívago conhecedor do melhor samba.
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Mino Carta é diretor de Redação da CartaCapital