Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Imagem, prazer e ousadia

A quarta edição do Observatório da Imprensa em comemoração aos 15 anos do programa na TV Brasil, exibida na terça-feira (28/5), levou ao ar uma entrevista de Alberto Dines com o premiado documentarista Eduardo Coutinho (vídeo aqui). Diretor de mais de 25 documentários, entre seus principais filmes estão Cabra Marcado para Morrer, Santo Forte, Babilônia 2000 e Edifício Master. Foi roteirista de filmes de ficção e integrou a equipe do Globo Repórter. Crítico atento da qualidade da programação e dos problemas estruturais da radiodifusão, Coutinho é autor do filme Um dia na vida, inédito no circuito comercial por conta de problemas de direitos autorais. A obra é uma compilação em 90 minutos de 19 horas da programação televisiva brasileira com cenas de jornais, novelas, programas de auditório, televendas e proselitismo religioso.

Antes do debate no estúdio, em editorial Dines classificou Eduardo Coutinho como “uma figura extraordinária, uma das vozes mais críticas da cultura nacional”. Para Dines, a postura crítica do cineasta incomoda, mas Coutinho não se deixa abalar. “Eduardo Coutinho é um dos nossos cineastas mais ativos, mais respeitados, premiados e independentes. Veterano jornalista e profissional de TV, ele encarna a nossa mídia, é seu ícone”, disse Dines (ver íntegra abaixo).

Coutinho explicou que a sua ideia inicial ao fazer Um dia na vida era falar sobre um assunto que o incomoda: o plágio no jornal impresso. Por sugestão de um amigo, decidiu focar na televisão. “Nós gravamos 19 horas mudando de um canal para outro. Quando escolhia um, não podia dar o outro no mesmo horário. E ficamos com um panorama de um dia comum, que não teve futebol, não teve nada. Então, fizemos uma edição [do material] que o diretor Leon Cakoff topou incluir no programa [do Festival É Tudo Verdade, em 2010]”. Um advogado orientou o cineasta a exibir o filme apenas em sessões gratuitas e a não divulgar os horários em que seria apresentado para evitar possíveis processos.

O diretor acredita que as emissoras de televisão não processariam a Videofilmes, empresa que produziu a obra, mas poderia haver problemas com as dezenas de pessoas que aparecem nas imagens. Para poupar a produtora de penas envolvendo dinheiro, Coutinho decidiu não exibir o filme para grandes plateias. “Hoje, o direito à imagem tornou-se uma mercadoria, até no mal sentido da palavra”, disse Coutinho. O cineasta contou que mesmo que a produtora saísse vitoriosa seria preciso pagar os advogados, o que implica um custo de pelo menos 10 mil reais a cada processo.

Popular e popularesco

“Eu não sou contra a cultura de massa. Hoje, a extrema direita francesa odeia a cultura de massa. Eu acho uma posição absurda fingir que ela não existe. Se ela existe, tem que encarar e saber o que você pode fazer para torná-la melhor, ou não. Eu não sou contra as coisas que tem lá [no filme], o que é terrível é que ela não é simplesmente nem a televisão de capitalista americano nem a televisão europeia, que tem algumas coisas de qualidade. É a bagunça absoluta”, sublinhou o documentarista. O diretor criticou a condenação da cultura de massa por sociólogos e antropólogos, que a rotulam de “popularesca” e criticam uma programação que não é voltada para esse segmento da sociedade. Na avaliação de Eduardo Coutinho, o Brasil poderia investir em estudos sobre a receptividade do conteúdo televisivo, tal como é feito em outros países. “Eu acho altamente elitista essa opinião de que o que a massa vê é ruim”, disse Coutinho.

O documentarista criticou a deformação no sistema televisivo e pontuou que o cerne desse debate é o sistema de concessão dos canais de radiodifusão. “No Brasil, as pessoas não entendem que a concessão é uma coisa pública, pode tirar a qualquer momento. A tragédia brasileira, para mim, é não ter a noção de público. É uma tragédia para o cinema, para a cultura, para a política, para tudo. Não temos hoje e não sei quando teremos”, lamentou o documentarista. Emissoras como CNT, Gazeta e Band vendem horários na programação – o que é proibido porque as emissoras são concessões públicas – para proselitismo religioso. Com a venda do espaço em horário nobre, acabam tendo uma lucratividade expressiva.

“Do ponto de vista utópico, se eu fosse rei do Brasil por um dia, como dizia ao Darcy Ribeiro, a primeira coisa que faria seria cassar todas as concessões provisoriamente. E começava do zero. Eu acho que a igreja católica não pode ter uma emissora aberta”, destacou o documentarista. Para Coutinho, nem o governo nem a oposição têm disposição para enfrentar esse problema e acabariam barganhando com os detentores das concessões. Outros problemas citados por Coutinho foram o uso de “laranjas” para possibilitar que parlamentares sejam concessionários de canais de radiodifusão e o fato de as concessões serem, na prática, vitalícias.

Para o cineasta, a TV Globo se diferencia das concorrentes. “A questão da TV Globo é a propriedade cruzada, o monopólio. Agora, a diferença entre a Globo e as outras televisões é absolutamente espantosa em termos de organização. É fácil falar da origem militar, mas do ponto de vista capitalista ela é uma boa emissora. As outras não são”, avaliou Coutinho. Para ele, a TV Globo não costuma arriscar no telejornalismo, mas faz experimentações de linguagem importantes em minisséries.

A força do folhetim

Dines criticou o fato de a sociedade brasileira não se mobilizar contra o grande destaque que as telenovelas têm na programação das emissoras. Para Coutinho, há grandes interesses em torno das comunicações no Brasil. Segundo ele, é impensável um jornal falar mal de um concorrente ou de uma rede de televisão. “Não há uma reflexão sobre isso e eu acho que há até motivações políticas. Quando se toca no assunto, é de uma forma que não resolve nada”, lamentou o cineasta. Para ele, poucos países no mundo têm um sistema de televisão tão poderoso e penetrante quanto do brasileiro. “Certamente, na Argentina não é assim. A televisão lá tem muito menos força, é menos conformista, é mais livre, ainda que mais pobre. O cinema brasileiro não luta só contra o cinema norte-americano. Ele luta com a TV Globo, e é muito desigual. Então, acaba fazendo o quê? Copiando”, explicou Coutinho.

Uma das mazelas do sistema de comunicação brasileiro, na visão de Eduardo Coutinho, é a pouca quantidade de jornais impressos de circulação nacional. Dines ressaltou que a mídia impressa ainda é uma referência e comentou que Coutinho, aos fins de semana, é frequentemente visto lendo jornais em uma livraria carioca. “Eu leio sobre Esporte, Política, Cultura, mas é impressionante como a publicidade aumenta”, avaliou o cineasta. Para ele, atualmente pouco há para ser dito, escrito e lido nos jornais. Há poucas reflexões e o conteúdo dos fatos é exageradamente simplificado. Coutinho também criticou a empáfia de intelectuais e artistas brasileiros, que não aceitam comentários negativos. Por outro lado, a imprensa parte para a agressividade: “A polêmica vira briga de churrascaria, desqualificam o outro”, disse Coutinho.

Com a experiência de mais de 25 documentários no currículo, o cineasta ponderou que é preciso saber ouvir o entrevistado e que a televisão brasileira e as novas mídias estão se distanciando dessa premissa: “Ouvir o outro tem que ser face a face, não pode ser via Facebook. Eu não sou catastrofista, mas o contato face a face é uma coisa que se torna cada vez mais rara, um sonho. Quando tem, você acha que é irrelevante, que o relevante é o contato que você teve no Facebook. É uma loucura isso, mas é só uma face. A internet tem mil possibilidades incríveis, mas ninguém ouve ninguém”.

Internet para o bem e para o mal

Avesso à tecnologia, Eduardo Coutinho relembrou o seu único contato com um computador. A experiência de digitar um texto ocorreu há dez anos, por intermédio de um amigo: “Quando eu fui para o computador, eu tinha 70 erros, três letras ‘p’ seguidas, por exemplo. Aí eu peguei o chamado mouse, que é o ratinho, e ia para um lugar e para o outro tirando os erros. Quando eu apertava, o ratinho voava para o outro lado e não acertava. Eu fiz uma hora de tentativa e disse: ‘Não quero mais saber disso’”. Até hoje o documentarista não comprou um computador. E só se comunica por correio eletrônico com a ajuda de pessoas do seu trabalho, que imprimem as correspondências em papel.

Eduardo Coutinho acredita que as novas mídias não são nem o céu nem o inferno, e é impossível prever os rumos das novas ferramentas de informação: “Imagina gente que tem 15 anos, que se formou nisso, como vai ser? Imagina quem tem 10 anos? Há uma forma de escrever diferente, abreviada. Os textos longos estão em perigo. Mudam as palavras porque elas não são ouvidas, elas passam imaterialmente para o outro lado. A forma de ver o mundo, de sociabilidade, vai mudar, mas até que ponto o que vai ser para o bem ou para o mal é que é difícil se dizer”, disse Coutinho.

Para o cineasta, os blogs podem ser perigosos quando reúnem um grupo de pessoas com o propósito de fazer um linchamento público de uma ideia ou de um indivíduo. Outra questão importante do uso da internet levantado pelo cineasta foi a atribuição de textos a autores que não os escreveram, como ocorre frequentemente com o escritor Luis Fernando Verissimo. Eduardo Coutinho elogiou o fato de as novas tecnologias terem barateado as produções de cinema, com as câmeras e as ilhas de edição digitais.

Forma e conteúdo

“O tema, para mim, não tem a menor importância.Eu tenho vontade de fazer um filme sobre o nada, simplesmente o que significa uma pessoa na câmera olhando a outra. Se o tema é a seca, a fome, não tem a menor importância”, explicou o cineasta. Sobre as críticas de que seus filmes têm poucas imagens e muitas falas, Coutinho rebateu: “A presença do corpo humano emana uma coisa chamada voz, e a voz separada do corpo é uma tragédia. Rádio é outra coisa. Você faz coisas maravilhosas em rádio. A Alemanha fez, a BBC faz. Então, para mim, um corpo que fala tem que estar presente e, ao contrário, uma imagem que ilustra aquilo que o corpo fala com força é sempre mais fraca. Se alguém fala do marido que morreu não me interessa ver a cara do marido que morreu. Ele pode até não ter morrido, mas ela me conta de uma forma que eu penso que isso é verdade para ela. E vai ser verdade para mim”.

Para Eduardo Coutinho, o documentário é um produto marginal na televisão porque não faz o espectador sonhar. “Tem pessoas que me dizem assim: não é possível viver sem ter uma utopia. E eu digo: é possível, sim, viver sem uma utopia, pelo menos a utopia que foi criada por Thomas Morus. Eu não preciso de uma grande ideia para viver. Estar vivo já é um negócio importantíssimo. Quando eu faço filmes, não faço para mudar o mundo, senão eu seria dono de uma televisão. Eu faço documentário porque me dá prazer, senão eu seria missionário”, explicou o diretor.

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Retrato cru

Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 685 , exibido em 28/5/2013

Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.

A série de especiais dedicados aos 15 anos deste programa traz hoje uma figura extraordinária, uma das vozes mais críticas da cultura nacional e talvez por isso pouco ouvida. Ele incomoda e não se importa com isso. Nem nós.

Eduardo Coutinho é um dos nossos cineastas mais ativos, mais respeitados, premiados e independente. Veterano jornalista e profissional de tevê, ele encarna a nossa mídia, é seu ícone. Uma de suas obras mais recentes é um documentário de 19 horas, repito 19 horas – um retrato arrasador da tevê brasileira exibido uma única vez numa mostra de cinema para 300 privilegiados espectadores numa versão de apenas 91 minutos.

Eduardo Coutinho, quando é que Um dia na vida poderá ser visto pelo Brasil como merece?