Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Exercícios nada sutis de anti-semitismo

O filme de Mel Gibson A Paixão de Cristo ainda não desembarcou por aqui mas já serve para alimentar o anti-semitismo.

Na home page da AOL (www.aol.com.br), no domingo (14/3), a chamada:

‘Os judeus mataram Cristo’. Para teólogo Orlando Fedeli, doutor em Ciências Sociais, não há dúvidas: ‘Os judeus condenaram Cristo e têm culpa por sua morte’. Leia entrevista.

Quem é o doutor Fedeli? É, informa-se no segundo nível do site, ‘presidente da Associação Católica Cultural Montfort (uma dissidência da Tradição, Família e Propriedade)’. Para quem sabe o que é a TFP, um baluarte da extrema-direita católica que teve dias de glória sob a ditadura militar, está explicado. Para a maioria, essa qualificação não quer dizer nada. Ou seja, não saberão que o entrevistado é um católico integrista, tanto quanto Mel Gibson adversário do Concílio Vaticano II, no qual o papa João 23 promoveu o mais importante aggiornamento da Igreja Católica no século 20. Tem saudades da Igreja pré-conciliar, da missa em latim, do antagonismo litúrgico aos judeus.

A entrevista (http://noticias.aol.com.br/brasil/fornecedores/aol/2004/03/12/0029.adp), na sua pobre linguagem permeada de barbarismos (‘A declaração vem se somar à uma infinidade de críticas…’; ‘vós mataste’), é uma peça de anti-semitismo puro. O autor da matéria diz que o tema é polêmico e provoca discussões entre ‘bispos, padres, e rabinos’, mas só ouve o dirigente da dissidência da TFP. E discorre sobre o filme como se já o tivesse visto – o que fica sem explicação. Viu nos Estados Unidos? Ou não viu mas deita falação assim mesmo?

Orlando Fedeli prega algo que é do tempo da Inquisição: os judeus devem se converter ao catolicismo. ‘Esse é o único caminho para eles, a conversão.’ Quer mais: ‘Até que todos os homens na Terra se convertam ao catolicismo, sempre haverá discussões’.

Nem o Vaticano escapa – esses grupos, quando atacam, não respeitam hierarquia: ‘João Paulo II chegou a pedir desculpas por erros passados, mas foi uma ação errada. A Igreja é santa, está acima de tudo’.

Fedeli lança uma advertência que o site da AOL deveria ter sido o primeiro a se fazer: ‘Um cretino pode muito bem fazer uma loucura depois de assistir ao filme’. Nem é preciso esperar o filme. Na frase seguinte, o teólogo, doutor em Ciências Sociais pela USP, parece se antecipar: ‘Tem muito racista por aí só esperando uma brecha para aparecer’. Porque, na resposta à pergunta seguinte, despeja:

‘O pai do Mel Gibson disse que não tinha gasolina suficiente para matar seis milhões de judeus na Segunda Guerra Mundial. De um jeito ou de outro, é inaceitável matar um único judeu. Não importa quantos foram, é uma discussão totalmente fora do propósito. O genocídio é condenável. Mas também concordo em [sic] até certo ponto com o pai de Mel Gibson, o Holocausto serviu como uma luva para a causa judaica. Com certeza esse número de mortos em Auschwitz é exagerado. Para você ter uma noção histórica, os executores dos campos de concentração eram judeus! Irônico isso, né! E por que será que o Estado de Israel foi criado logo depois da Segunda Guerra Mundial? Não precisa ser muito esperto para perceber que os judeus se fizeram e ainda se fazem de vítimas. Tome como exemplo esse filme – quem está ganhando com toda essa polêmica são os próprios judeus. Eles se beneficiam da polêmica e atraem gente para sua causa. É realmente genial’.

É onde a família Gibson queria chegar.

‘Verdade histórica’

Nos principais jornais e revistas do país o filme tem sido apresentado com visão crítica. Será importante ver como a televisão o trata. A bilheteria parece garantida, embora não haja no Brasil as multidões de fiéis tradicionalistas dos Estados Unidos. A visão transmitida nos comentários embarcará irresponsavelmente numa suposta ‘neutralidade’? A entrevista publicada no site da AOL é uma amostra do que pode vir por aí.

Cada palmo do terreno da democracia brasileira, que ainda tem tanto terreno a conquistar, precisa ser defendido contra qualquer forma de racismo e preconceito, entre eles um dos mais antigos da história humana, o anti-semitismo. Todos a postos. Judeus, como o autor destas linhas, ou não.

P.S. 1 – O articulista Olavo de Carvalho afirma (Jornal da Tarde, 26/2/04) que o filme de Mel Gibson transpõe para a tela a narrativa bíblica da paixão de Cristo ‘com a maior fidelidade já alcançada no cinema’. Defende-o sem tê-lo visto. Falta honestidade intelectual, mas não é de se estranhar.

A idéia de que uma criação ficcional pode ser o retrato fiel de uma narrativa histórica não se sustenta. Carvalho parece não ter noção do que são narrativas históricas e ficcionais. E trata como um talmudista o texto evangélico. Fora da esfera religiosa, os Evangelhos são relatos históricos. Se são relatos, são por definição criados por seus autores.

Mas o ponto aqui não é como o relato se comporta diante dos fatos ou como o filme funciona em relação à narrativa bíblica, seja ou não tomada como corpo sagrado de conhecimento, ou revelação. O que importa socialmente é como o filme será recebido. Carvalho, que ainda não o viu, diz que ele não fará mais gente odiar judeus do que filmes sobre nazistas fizeram os espectadores odiar alemães. O que também não se sustenta, principalmente porque o processo a rigor ainda nem começou.

O articulista passa desse tópico exegético sem objeto – porque não viu o filme, insista-se – ao delírio de uma teoria conspiratória. Quem critica o filme de Gibson, propõe, ataca um bloco que defende a civilização, bloco que ele caracteriza da seguinte maneira:

‘A aliança de cristãos e judeus é a base do movimento conservador que hoje resiste ao ‘globalismo progressista’ propugnado, na ONU e na mídia internacional, por um comitê central de comunistas, radicais islâmicos e neonazistas’.

É quanto basta para encerrar as citações ao lavor intelectual de Olavo Carvalho. Se os cristãos e os judeus dependerem desse tipo de defensor, estão feitos.

Os fatos ligados ao filme de Mel Gibson não são tão complicados. Trata-se de mais uma ofensiva anti-semita, que, como todas as demais, tem seu contexto. O contexto atual é dramaticamente perigoso, só não vê quem não quer. Cumpre ser intelectualmente livre. ‘A liberdade’, escreveu o filósofo Emmanuel Lévinas, ‘consiste em saber que a liberdade está em perigo.’

P.S. 2 – Carlos Alberto di Franco (O Estado de S.Paulo, 15/3/04) também defende o filme de Mel Gibson sob o argumento de que o sucesso de público lhe valida conteúdo e forma. É uma versão extremada da posição da Universidade de Navarra, Espanha, à qual é ligado, de culto à primazia do mercado. Para não ir muito longe, semelhante raciocínio validaria o extermínio dos judeus da Polônia sob o argumento de que ele encontrava apoio na maioria da opinião pública. E o pregador Jesus Cristo, que tudo indica foi um extraordinário comunicador, não teria procurado doutrinar segundo um sistema de valores, mas saber antes o que a assistência desejava ouvir.

Di Franco também recorre ao conceito de ‘verdade histórica’. E apela para salvaguardas retóricas que anti-semitas costumam usar: alguns judeus gostaram do filme, alguns judeus são personagens simpáticos do filme, alguns judeus trabalham no filme, ele mesmo tem alguns amigos judeus desde criancinha. Nem uma palavra sobre o contexto em que o filme é lançado e sobre o preconceito – dado da realidade social – que seus rolos vão alimentar.