Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O olho do jornalista

Olhos não se compram. Jornalistas também não.

Título de um livro sobre os filmes de Wim Wenders ou regra ética básica, as fotos desta semana de dois olhos atingidos na mosca por balas de borracha viraram símbolo, ex-libris, selo de uma profissão. Por acaso ou de propósito, a mira das armas focou os olhos dos jornalistas da TV Folha, Giuliana Vallone, e do fotógrafo da agência Futura Press, Sergio Andrade, na maior manifestação brasileira desde o impeachment de Collor de Mello. A profissão que perdeu vaga na imprensa, despencou de status, perdeu o diploma, ficou sem papel ou credibilidade e leitor, sobrevivendo virtualmente no bolo com todo mundo sem ganhar um tostão, agora foi atingida no que era mais essencial, os olhos.

Olhos de jornalista são olhos-veículo para o público ver o que não era para ser visto. Os reis costumavam matar os portadores de más notícias. No Equador, desde a semana passada os olhos dos jornalistas passaram a ser vigiados, dirigidos, censurados. Na Argentina já quase não podem enxergar. Na Venezuela, só podem ver o que é oficial. No Brasil das manifestações recentes foram cegados por balas de borracha.

Era uma vez uma profissão respeitada – não só os olhos, mas o corpo todo de um jornalista que cobria manifestação, eleição, tumulto de rua ou guerra. Numa das arruaças no Egito a 11 de fevereiro de 2012, em comemoração à derrubada de Hosni Mubarak que governou o país por 30 anos, a jornalista americana Lara Logan, da rede de TV CBS foi estuprada “por 200, 300 homens, com crueldade, com as mãos” em plena praça Tahrir, no Cairo, segundo depoimento dela própria ao programa 60 Minutes, da rede americana CBS. No mesmo ano, em novembro, o cinegrafista Gelson Domingos, da Band, foi morto ao ser atingido no peito, a bala varando o colete fajuto durante uma operação policial do BOPE na favela carioca dos Antares.

Para a história

Não há lado a tomar, não cabe jogo de esconde-esconde. O jornalista está exposto na linha de frente, ou não terá olhos para ver. Olhos que captam até o que a razão deixou de enxergar, como provou o filme Blow Upde Michelangelo Antonioni, em 1966. Baseado num conto de Julio Cortazar (“Las Babas Del Diablo”, 1959) e na vida do fotógrafo britânico David Bailey, o fotógrafo de moda Thomas Hemmings tira uma foto acidental e, na revelação, surge um crime de morte que ele não viu. Ou viu? Ou imaginou? O olho captou por ele.

Ninguém esquece o olho de uma mulher cortado pela navalha de um homem no filme expressionista de Luis Buñuel, Un Chien Andalou(França, 1928). O filme virou ícone do manifesto surrealista de André Breton, sujeito a várias interpretações. Símbolo do ato de filmar, da arte cinética, do inconsciente do diretor ao focar a câmera… para matar, filmar, captar, perdurar a imagem. A imagem é tão forte que A Idade de Ouro,do mesmo Buñuel, repetiu em 1930 o olho vazado – símbolo anticlerical, ataque à burguesia, o filme foi banido durante 50 anos, considerado um sacrilégio pela igreja católica.

Buñuel também filmou a mão decepada. Sessenta e sete jornalistas foram assassinados no ano passado no mundo – este ano quatro no Brasil, além de um no México, outro ndo Equador e um terceiro na Colômbia. Em 2011 foram 46, o dobro de 2010; em 2009 quase o mesmo número de 2012, 74 profissionais da imprensa. Mataram junto o olhar que segundo Roland Barthes (Câmara Clara), quando se detém, atravessa com a fotografia o tempo.

Símbolo deste Observatório da Imprensa,os olhos, aqui feridos, nas fotos impressionantes espalhadas pela imprensa, vão ficar na história. Olhos diretos nos fatos que, como os do cineasta alemão Wim Wender, dispensam efeitos especiais e não se compram. Registram imagens que não eram para ficar retidas como aconteceu com o fotógrafo-mito de Blow Up.E depois desta semana os olhos dos jornalistas vão permanecer surrealistas, rasgados por navalhas como previu Buñuel.

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Norma Couri é jornalista