Maria do Carmo nasceu às três horas da tarde de um inverno gelado, no sobrado de pedra composto de um térreo e de um andar, com chão de terra batida, sem luz e sem água, em que seus pais moravam de favor.
Assim Ruy Castro descreve o momento em que Carmen Miranda veio ao mundo, no remoto ano de 1909, no ainda mais remoto povoado de Várzea de Ovelha, em Portugal. Quem poderia dizer que, no futuro, aquela portuguesinha se transformaria na brasileira mais famosa do século 20? Que seria uma das maiores cantoras do Brasil? E que se tornaria uma estrela de Hollywood, tão cobiçada quanto as grandes atrizes americanas da época?
Pois essa trajetória fantástica está magistralmente contada, do berço ao túmulo, em Carmen, uma biografia, do jornalista e escritor Ruy Castro, em edição impecável da Companhia das Letras. Ruy é um craque. Já havia prestado inestimável contribuição à historiografia brasileira ao escrever as biografias de Nelson Rodrigues e de Garrincha. Carmen Miranda não poderia estar em melhores mãos.
Pesquisador obsessivo, Ruy escarafunchou a vida de Carmen durante cinco anos. Quem mais teria se permitido o preciosismo de tocar os trajes que Carmen usou em seus shows nos Estados Unidos – hoje pertencentes ao Museu Carmen Miranda, no Rio de Janeiro –, como um ato extremo de tentar penetrar na intimidade de sua biografada? Ruy fez isso. O resultado dessa dedicação apaixonada é uma biografia que dificilmente será suplantada.
Turbilhão de personagens
No livro, não ficamos sabendo apenas tintim por tintim da vida de Carmen, a ‘pequena notável’, a ‘Brazilian bombshell’ que encantou platéias. Como toda grande biografia que se preza, findamos a leitura de Carmen com uma compreensão maior do período em que Carmen Miranda viveu. Não apenas com relação ao ambiente artístico e cultural do Brasil da primeira metade do século 20, mas também quanto aos bastidores da indústria dos sonhos de Hollywood, no mesmo período.
De posse de uma montanha de informações, Ruy conta a história de Carmen praticamente ano a ano, desde o seu nascimento em Portugal até a sua morte nos Estados Unidos, em 1955. Está tudo no livro. Todas as músicas gravadas por Carmen; todos os filmes estrelados; todos os shows; todas as viagens à Argentina, a Cuba, à Europa; todos os namorados; todos os detalhes das roupas que usou em suas apresentações; todos os seus parceiros artísticos. E o registro pioneiro da infância de Carmen na zona boêmia da Lapa, Rio de Janeiro, experiência que conferiu a sua personalidade ginga e desenvoltura – traços que a caracterizariam. Enfim, tudo.
Ruy desce a tal nível de detalhes que dá ao leitor a sensação de poder devassar a vida de Carmen com a intimidade de uma câmera oculta. E, de quebra, poder flagrar a história de um turbilhão de personagens, do Brasil e dos Estados Unidos, que giravam em torno do mito Carmen Miranda.
Inevitável divisão
A pesquisa põe por terra versões até então alimentadas amiúde sobre o fenômeno Carmen Miranda nos Estados Unidos. Põe fim, por exemplo, aos mexericos que passaram todo esse tempo creditando à política da boa vizinhança do governo Roosevelt, durante a Segunda Guerra Mundial, o sucesso de Carmen por lá. Ledo engano. Ela causou furor já na primeira apresentação feita em Boston, ao lado do Bando da Lua, numa espécie de pré-estréia antes de seguir para uma temporada numa boate em Nova York. Aliás, Carmen já deixara embasbacado seu primeiro empresário americano, Lee Schubert, ao conferir uma apresentação dela no Cassino da Urca.
Carmen foi um dínamo de alegria, que nem mesmo o uso crescente de barbitúricos e anfetaminas – aditivos consumidos a granel no meio artístico hollywoodiano – extinguiu por completo. Ela se manteve na ativa até o último instante. Com o coração seriamente abalado, sem que o soubesse, Carmen fez uma última apresentação em Havana. Chegou a desmaiar diante das câmeras, ao se apresentar ao vivo no Jimmy Durante Show, programa da TV americana, um dia antes de morrer. E nem a relação infeliz com David Sebastian, o oportunista marido americano, foi capaz de apagar sua estrela. Era uma pessoa em permanente ebulição, um tiquetaque constante, título, aliás, de uma de suas famosas canções, Tic-tac do meu coração.
Toda essa torrente de emoções é o que o leitor desse portentoso trabalho tem em mãos. Sem dúvida que a arte do biografismo no Brasil, que já reúne obras monumentais como Olga e Chatô, o rei do Brasil, de Fernando Morais, passa agora por uma inevitável divisão: antes e depois de Carmen. Antes e depois de Ruy Castro.
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Jornalista, editor do Balaio de Notícias