Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Nelson de Sá


‘O ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, foi até Eldorado, ‘onde está o foco da febre aftosa’, e ouviu do repórter na Globo News:


– O senhor acredita em bioterrorismo?


– Não. Não acredito em terrorismo, não. Acho que é uma fatalidade.


Bioterrorismo ou fatalidade, a notícia era que o ministro finalmente ‘liberou dinheiro para conter a doença’, nas manchetes do ‘SBT Brasil’.


Ainda assim, na escalada da Record:


– Mato Grosso do Sul investiga se aftosa foi criminosa.


Para além daí, ecoou a especulação quanto ao impacto sobre as exportações.


Sem arriscar ‘estimativas’, a Globo News relatava que ‘técnicos do Ministério da Agricultura viajam com o objetivo de convencer os países europeus a suspender embargo’.


Reportagens no exterior arriscavam mais. A agência espanhola Efe, reproduzida na Folha Online, dizia que o embargo ‘pode afetar entre 55% e 60% das exportações para os países europeus’.


E o britânico ‘Financial Times’ dizia que ‘o foco colocou em risco pelo menos metade das exportações de carne fresca’. O ‘Jornal Nacional’ repetiu então, na escalada:


– A febre aftosa compromete quase metade das exportações brasileiras de carne.


Mas o ex-ministro Pratini de Moraes, presidente da associação dos exportadores de carne, falando à BBC Brasil, mantinha o otimismo:


– É perfeitamente possível continuar exportando normalmente se o embargo [de União Européia e Rússia] se restringir à área afetada.


Daí a manchete da Band, também otimista:


– Exportadores brasileiros se preparam para vender carnes produzidas em Estados que ficaram fora da proibição.


Para acompanhar o impacto no Mato Grosso do Sul e arredores, uma alternativa é o blog de Armando Anache -que ganhou projeção semanas atrás, citado na TV pelo senador Eduardo Suplicy.


O blogueiro segue os passos do ministro, reproduz fotos e mais fotos da fazenda e comenta o noticiário regional e do outro lado da fronteira, com o alarme da mídia paraguaia.


NEM FUTEBOL


Criança no ‘caos’, na CNN


No amontoado de más notícias sobre o Brasil pelo mundo, nem o futebol escapa. Ontem na CNN, as imagens do ‘caos’ em Belém, na descrição do canal americano, assombraram a cobertura da seleção. Em particular, as cenas com crianças chorando ou sendo carregadas para não se machucarem. Do apresentador:


– O jogo em si não tem o menor significado.


A cobertura foi bem diversa daquela do ‘JN’, um dia antes, que se esforçou por responsabilizar o público -com manchete dizendo que ‘milhares de torcedores se envolvem em tumulto’ e, na reportagem, ‘a multidão inconformada tentou entrar a qualquer custo’.


E Larry Rohter, com atraso de semanas, noticiou o caso Edilson Pereira de Carvalho anteontem no ‘NYT’, mas relacionando insistentemente o árbitro a Lula.


A Virgem


É a padroeira do Brasil, como anunciou a escalada do ‘JN’, ontem. Mas Nossa Senhora Aparecida é mais, para a Globo. Repórter, ao vivo :


– Em Aparecida, o maior santuário do mundo dedicado a Virgem Maria.


O ‘SBT Brasil’ seguiu linha parecida, em sua manchete da ‘padroeira’. Mas o ‘Jornal da Record’, ligado à Universal, nem deu na escalada.


Até quando?


A Globo pode ser católica ao extremo, mas o catolicismo está em alerta no país, pelo que se lia na cobertura do sínodo em que falou d. Cláudio Hummes, com ‘grande repercussão’ junto ao papa e jornais italianos. Dele, ontem à BBC Brasil:


– Até quando o Brasil será ainda um país católico?


Para o cardeal, só um ‘esforço extraordinário’ poderá manter a maioria católica.


‘FOI ASSASSINADO’


A confusão começou pelas rádios, no final da tarde, com Jovem Pan e CBN dizendo que legista do caso Celso Daniel ‘morreu’, para a primeira, ou ‘foi assassinado’, para a segunda. Em ambas, a secretaria de Segurança confirmava a morte sem dar ‘detalhes’.


Mais contida do que sua própria rádio, a Globo entrou com Fátima Bernardes num intervalo, pouco depois, afirmando que o médico ‘foi encontrado morto’, ponto. Na escalada do ‘JN’, voltou ao ataque:


– Surge o sétimo cadáver do caso Celso Daniel. Desta vez, o perito que afirmava que o prefeito foi torturado.


Para o contraste, o enunciado do ‘SBT Brasil’:


– Morre médico legista do caso Celso Daniel.’



NEW JOURNALISM


Sérgio Rizzo


‘Nos bastidores de HOLLYWOOD’, copyright Folha de S. Paulo, 13/10/05


‘Hollywood nua e crua: um diretor que instala as filmagens de um drama de guerra em sua fazenda e aproveita os intervalos para cavalgar e pescar, produtores que primeiro palpitam e depois intervêm desordenadamente no trabalho, espectadores que massacram o filme nos cartões de avaliação das exibições-teste e desorientam a todos -e o mesmo diretor que, diante do caos, lava as mãos e vai filmar o próximo longa na África.


Parece ótimo argumento para ficção e é narrado como se fosse. Mas, como a indústria cinematográfica americana gosta de anunciar nos créditos de abertura, os fatos são todos verídicos em ‘Filme’, obra-prima da reportagem literária publicada em 1952, primeiro em cinco edições consecutivas da revista ‘The New Yorker’ e depois em livro e só agora traduzida no Brasil.


A jornalista Lillian Ross, então com 25 anos, lançou as bases do ‘new journalism’ -muito antes que o gênero fizesse a fama de Gay Talese e Truman Capote, entre outros- com seu relato dos bastidores de ‘A Glória de um Covarde’ (51), de John Huston para a Metro-Goldwyn-Mayer.


Aos 78, ainda hoje redatora da seção ‘The Talk of the Town’ da ‘The New Yorker’ (o livro é dedicado à revista), ela conversou por e-mail com a Folha.


Folha – Você acreditava que contribuiria para revelar, pela primeira vez descrito por dentro, o ‘sistema dos estúdios’ de Hollywood?


Lillian Ross – Nunca pensei em qualquer ‘propósito’ para o que escrevo. Quando aceitei o convite de John Huston para ir a Hollywood e acompanhá-lo enquanto fazia o filme, pretendia escrever um perfil dele. Ele foi muito gentil e prestativo, concordando que eu presenciasse todas as reuniões e filmagens. Quando conheci Gottfried Reinhardt [produtor de ‘A Glória de um Covarde’], Dore Schary [chefe de produção da MGM], L. B. Mayer [chefe do estúdio] e todos os que trabalharam no filme, bem como outras pessoas, incluindo a mulher de Huston, Ricki, senti que aquilo tudo era uma grande história de ficção sobre a indústria cinematográfica e que os principais personagens pediam para se tornarem protagonistas de um romance. Conversei com Harold Ross e William Shawn [editores da ‘The New Yorker’] sobre como planejava proceder, e eles me encorajaram e apoiaram. Eu estava apenas começando como redatora da revista e tinha adorado a resposta ao meu trabalho, em especial um longo texto sobre Ernest Hemingway [depois publicado em livro como ‘Portrait of Hemingway’].


‘Filme’ foi o primeiro trabalho jornalístico escrito em forma de ficção. Houve muitas tentativas de imitá-lo. Truman Capote costumava me perguntar sobre o meu modo de escrever. ‘Eu quero picar o seu cérebro’, dizia -expressão cheia de vida que me fazia rir. Mas conversamos muito sobre o quanto eu gostava de usar formas ficcionais para escrever histórias factuais, até mesmo para os textos breves da seção ‘The Talk of the Town’ da ‘The New Yorker’. Ele se apropriou das minhas falas cerca de 15 anos depois, em 1965, quando fazia o marketing de seu trabalho na TV.


Folha – Como você enxerga Hollywood hoje?


Ross – Não existe um fenômeno singular chamado ‘Hollywood’. Há muitos e diversificados talentos em centenas ou milhares de áreas do negócio. O financiamento da criação artística e original sempre foi difícil e talvez continue sempre a ser assim.


Folha – E a cobertura de Hollywood feita hoje pela imprensa?


Ross – Não acompanho a imprensa que cobre Hollywood. Não leio muito do que a imprensa de hoje publica. Eu me informo ouvindo a National Public Radio, a BBC e a CNN na TV.


Folha – O que ainda a atrai na seção ‘The Talk of the Town’ da ‘The New Yorker’?


Ross – Amo escrever aqueles textos breves. Encontro formas ficcionais para eles. Tento fazer um ‘conto’ de cada um. É muito estimulante. Encaro cada um como uma oportunidade de ser original, de me divertir, de escrever uma história que não se pareça com nenhuma outra em nenhum outro lugar. Parece fácil, mas é bem difícil. Cada uma pode ser lida rapidamente. Cada uma demora muito para ser criada.


Folha – É possível ensinar isso a alguém?


Ross – No momento, procuro fazer isso com um jovem em troca de seus conhecimentos como cozinheiro. Ele é um ótimo ‘chef’ e quer ser um repórter-escritor. Acredito que possa ensinar a ele o que considero ser a essência da atividade, mas até um certo ponto. Isso equivale a apenas 10% do que realmente importa. O restante depende de características individuais: história de vida, experiência, natureza, autodisciplina, curiosidade, humor, entusiasmo, paixão, originalidade, coragem, biologia, determinação, idade, ego e energia. Vigilância em relação à sensibilidade dos outros; capacidade de empatia e de observação enquanto mantém a imparcialidade; e a habilidade de resistir a fazer julgamentos morais das outras pessoas.’



***


‘Como em um bom suspense, livro destrói visão romântica sobre filmes’, copyright Folha de S. Paulo, 13/10/05


‘Troque a próxima sessão de cinema (qualquer uma) pela leitura de ‘Filme’: ao lado de ‘O Gênio do Sistema’, de Thomas Schatz, a esplendorosa reportagem de Lillian Ross sobre os bastidores de ‘A Glória de um Covarde’ expõe detalhadamente o modo de trabalho de Hollywood e contribui para destruir visões românticas ainda hoje muito populares a respeito de quem (e como) faz filmes em escala industrial.


Não, não são os diretores, nem os produtores, os atores ou as centenas (às vezes, como em ‘A Glória…’, milhares) de outros profissionais envolvidos. São todos eles, organizados em cadeia hierárquica de composição peculiar que gera toda espécie de braço-de-ferro, mas são também, e talvez acima de tudo, a cultura corporativa desenvolvida em determinado espaço, a um certo tempo, e as circunstâncias específicas que pautam a realização de um longa -algo como o tal ‘gênio’ a que se refere Schatz, citando frase do crítico André Bazin.


Primeiro, Ross gruda em John Huston, com 44 anos no início do projeto, em 1950, e um currículo que já incluía ‘Relíquia Macabra’ (41), ‘O Tesouro de Sierra Madre’ (48) e ‘O Segredo das Jóias’ (50). Tinha um escritório na MGM, que o tratava como um de seus roteiristas e diretores mais talentosos, e um pé na Horizon, produtora na qual era sócio de Sam Spiegel (produtor de ‘Sindicato de Ladrões’, ‘A Ponte do Rio Kwai’ e ‘Lawrence da Arábia’), e que realizaria seu filme seguinte, ‘Uma Aventura na África’ (51).


À medida que conhece pessoas, caminhos e salas, Ross vai se soltando de Huston para conversar com outros personagens da MGM e de ‘A Glória de um Covarde’. A cidade dos sonhos adquire contornos bem definidos que ajudam a compreender como se move a gigantesca engrenagem dos estúdios -nem bem o filme começa, por exemplo, e lá vai o departamento de divulgação abastecer a imprensa com ‘informações’ que chegam ao conhecimento da equipe de filmagem só quando saem nos jornais.


No meio do livro, ‘A Glória…’ já está pronto. O que vem depois? Justamente as circunstâncias, sempre elas, que colaboraram para transformar ‘Filme’ num clássico do jornalismo literário. Ross relata então a crise nos bastidores e, como em um bom suspense, deixa as principais explicações para o final. Foi só ali, na verdade, que as encontrou.’



Sérgio Dávila


‘‘New Yorker’ marca encontro de 4.000 dias’, copyright Folha de S. Paulo, 13/10/05


‘Primeiro, a má notícia. Este repórter não leu inteiras todas as quase 4.000 edições da revista ‘New Yorker’, a melhor e (ainda hoje) mais bem escrita publicação semanal norte-americana, que comemorou seus 80 anos de existência no dia 21 de fevereiro último. Segundo, a boa: se o leitor quiser, pode passar os próximos 11 anos e meio fazendo isso, se devorar uma edição por dia.


É que acaba de ser lançado ‘The Complete New Yorker’ (a ‘New Yorker’ completa, Random House), um livrão vermelho com 125 páginas de texto, uma introdução bem-humorada do atual editor, David Remnick, e oito DVDs-ROM com TODA a revista digitalizada, da primeira edição, que chegou às bancas dos EUA no dia 21 de fevereiro de 1925, com o que se tornaria seu símbolo da revista na capa, o dândi Eustace Tiller (na época ainda não-batizado), até a comemorativa dos 80 anos.


Inédita no Brasil, pode ser comprada em sites de vendas que entregam no país, como Amazon e Barnes & Noble por US$ 100 (R$ 223 mais envio). Além do conteúdo, traz mecanismos de busca completos. Digite, por exemplo, ‘Dorothy Parker’, e aparecem na janelinha os 115 textos que a escritora fez para a revista; ou Art Spiegelman (68 ilustrações); ou ‘Truman Capote’ (13 reportagens). É de enlouquecer.


‘Os leitores reclamavam’, escreve Remnick, o quinto editor, que sucedeu o furacão Tina Brown em 1993, pouco antes de a revista ser vendida para a gigante Condé Nast e pouco depois de a jornalista britânica ser acusada de quase acabar com a eterna fleuma da revista, ao publicar pela primeira vez fotografias, por exemplo, e redesenhar o conteúdo inteiro, deixando-o mais ‘pop’.


Até agora, para ter acesso a edições passadas, diz Remnick, era preciso que fossem a bibliotecas atrás de microfilmes, com ‘resultados chaplinianos’, ou fizessem como estudantes e confiassem no Google, que consideram ‘uma moderna Biblioteca de Alexandria turbinada’. Ele tem razão: o site da ‘New Yorker’ (www.newyorker.com) é um dos mais blasés do ramo jornalístico.


Mas de certa maneira define a alma da revista que formou gerações de leitores, revelou gerações de jornalistas, escritores e intelectuais e apresentou uns aos outros num casamento feliz: se todo o mundo está fazendo igual, a ‘New Yorker’ faz diferente -geralmente, de maneira surpreendente. Não é isso o que buscamos, afinal? Era o que acreditava Harold Ross, fundador e primeiro editor, ao chegar a Nova York vindo da Costa Oeste.


Ele sabia que queria criar uma revista semanal, mas tinha mais idéia do que não queria que ela fosse do que o contrário. Numa ‘carta de intenções’ que escreveu meses antes de lançá-la, dirigida a potenciais anunciantes e assinantes, dizia que queria ‘inteligência e clareza’, ‘o humano em vez do corporativo’ e leitores com ‘interesse cosmopolita’. ‘Não vai ser nem radical nem intelectual. Será o que chamamos de sofisticada e presumirá que seus leitores tenham um certo grau de inteligência. Vai odiar bobagens.’


E assim foi, ou pelo menos seria por um tempo. As primeiras edições tiveram picos de 500 mil exemplares, mas logo estacionaram em 25 mil, no que foi chamado de ‘o grande fracasso de 1925’. Até que Ross (1892-1951), conhecido mais por sua capacidade de trabalho do que por ser um intelectual (é dele a pergunta ‘Moby Dick é o homem ou a baleia?’), mas esperto como uma raposa, fez o que fazia melhor: cercar-se de gente brilhante.


Contratou Katharine White, que o convenceu a investir em ficção séria e reportagens de peso; E.B. White, que daria forma ao texto da revista (e depois lançaria a ‘Bíblia’ do gênero, ‘The Elements of Style’, o avô de todos os manuais de jornalismo); e o mítico Joseph Mitchell, o precursor do jornalismo literário, que escreveu reportagens e perfis irretocáveis de 1938 a 1964, quando colocou ponto final em seu último texto -mas ainda teria uma sala e trabalharia na revista até sua morte, em 1996, ninguém sabe muito bem fazendo o quê.


Deu certo pelas próximas oito décadas, com um período de crise nos anos 90. Hoje, a revista gira em torno do milhão de exemplares semanais e acumula prêmios.


De suas páginas saíram obras-primas do jornalismo como ‘Hiroshima’, de John Hershey, que pela primeira vez foi o tema único de uma edição, em 31 de agosto de 1946; a cobertura que Hannah Arendt fez do julgamento do criminoso nazista Adolf Eichmann, cinco capítulos em 1963; ‘A Sangue Frio’, relato de Truman Capote dividido em quatro capítulos, em 1965; e, mais recentemente, a série de Seymour M. Hersh que revelou o escândalo de Abu Ghraib, entre outras.


Também na literatura. Um jovem chamado Holden Caulfield (que viraria o protagonista de ‘O Apanhador no Campo de Centeio’) fez sua primeira aparição no conto ‘Slight Rebellion Off-Madison’, de um tal J.D. Salinger, em 21 de dezembro de 1946. Edmund Wilson, John Updike e Woody Allen, entre outros, devem seu pontapé inicial à revista.


Foi aqui que Dorothy Parker fez sua casa desde o número 1 (diz a lenda que, no primeiro ano, no auge da crise de vendas, foi cobrada por Ross por um artigo que não escreveu; e respondeu: ‘Alguém estava usando o lápis’). Foi aqui que Pauline Kael, a crítica das críticas de cinema, virou Pauline Kael (ao pedir para sair, nos anos 90, a resenhista diria que a melhor parte da aposentadoria era não ser mais obrigada a assistir a filmes de Oliver Stone).


E muito mais. Na verdade, e tudo o mais, agora ao alcance de nosso mouse. Temos um encontro marcado em 11 anos e meio.’