Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O domingão do Falcão

Com o documentário Falcão – os meninos do tráfico, o objetivo do rapper MV Bill era socar o estômago de milhões de brasileiros que, supõe-se, conhecem apenas pela metade a realidade de crianças e adolescentes envolvidos com o varejo do tráfico de drogas. A pretensão de possuir o poder de fazer cair a ficha não é de hoje, mas o meio empregado para tal é quase sempre o mesmo: a imagem que, supõe-se novamente, vale mais que mil palavras. Pouco se fala da natureza da tal ficha que se quer empurrar estômago adentro, da lógica que pauta a cobertura criminal da emissora escolhida para divulgação das imagens, ou da estrutura de um modelo de sociedade em que os sócios esperam ansiosos pelo Fantástico – atraídos por uma campanha publicitária estimada em R$ 20 milhões –, assistem apavorados e, no fim das contas, não sabem se o destino desses não-sócios deve ser o cárcere ou a fábrica.


Falcão é daqueles produtos midiáticos que nos fazem pensar sobre as boas intenções: são elas que valem ou delas o inferno está cheio? O problema inicial do documentário produzido por MV Bill e Celso Athayde é que os efeitos esperados acabam se reduzindo ao próprio método. Supõe-se, mais uma vez, que imagens chocantes podem mudar o rumo das coisas – no caso, o futuro dos jovens da periferia de várias cidades do Brasil envolvidos com atividades fora da lei. Mas algumas opções de produção, e a forma como as imagens e depoimentos desses jovens são veiculados e discutidos por intermédio da Rede Globo tendem a comprometer qualquer perspectiva de ao menos fazer cócegas no senso comum criminológico, aquele mesmo que exige redução da maioridade penal. Talvez alguns doadores do Criança Esperança se convençam de que o lugar dessas crianças pode ser um futuro no almoxarifado do Projac, no lugar da penitenciária.


Jogo macabro


MV Bill montou um prato cheio para a lógica de produção televisiva em geral, e da Rede Globo em particular. Ele partiu da premissa de que os depoimentos impactantes dos garotos não deveriam ser articulados com maiores considerações de entendidos do tema. A explicação do rapper é basicamente a de que não queria a intromissão de quem não vive a realidade nua e crua do cotidiano do tráfico. Editou depoimentos impactantes e surpreendentes, mas que não avançam além de uma bomba midiática repleta de lugares-comuns e percepções sobre eles próprios que não diferem muito dos preconceitos a eles dirigidos pela classe média.


Ironicamente, ao longo da semana que se seguiu à exibição, uma avalanche de especialistas esteve lado a lado com o próprio Bill em todos os programas jornalísticos da emissora, todos repetindo incessantemente o arremate previsível ao vídeo: a sociedade precisa dar oportunidades a essas crianças.


O momento máximo da turnê de MV Bill nas telas da Globo foi no Domingão do Faustão, onde compareceu ao lado do secretário de Administração Penitenciária do Rio de Janeiro, Astério Pereira dos Santos, e viu do palco os pitacos de meia dúzia de especialistas escolhidos pela própria emissora. Bill participou ainda de um reencontro promovido pela produção do programa com o único personagem ainda vivo entre os 17 escolhidos para exibição no Fantástico do domingo anterior. Ninguém procurou saber se o critério da escolha não foi exatamente a produção de um fato midiático através de um macabro jogo de resta um. O Domingão teve ainda o próprio Faustão admitindo que a exibição de vídeos como Falcão atendem aos interesses comerciais da televisão, com a ressalva de que haveria também a preocupação com a responsabilidade social da empresa. O que de novo aconteceu, afinal?


Metáfora final


Nada de novo. Tudo aconteceu novamente, com direito à presença ao vivo do próprio falcão sobrevivente – entre as compenetradas dançarinas ao fundo e a platéia de olhos arregalados – respondendo ‘sim’, de cabeça baixa, quando o apresentador lhe perguntava, severo, se a ‘sociedade’ podia confiar nele e lhe dar uma nova chance de realizar o sonho de ser palhaço. Recebeu convites para ingressar no circo de Marcos Frota, ator da Globo. Exatamente conforme o script do tratamento da questão criminal no âmbito da parceria entre mídia e sistema penal: de um lado a produção de um noticiário positivista, personificando o mal na figura do bandido e exigindo endurecimento da repressão; de outro, apoiando, patrocinando ou promovendo iniciativas balizadas na idéia do resgate da cidadania ou da auto-estima, de acordo com a estratégia de marketing da responsabilidade social – quando, no caso, a emissora fatura com o rótulo duplamente mítico da empresa/mídia cidadã.


O documentário Falcão – os meninos do tráfico cai na armadilha de tratar a questão criminal perambulando pelo território da razão dualista. Não chega a questionar a dicotomia tola entre ‘bandidos’ e ‘homens de bem’; apenas acena com a possibilidade e a necessidade de que crianças e adolescentes pobres sejam bem comportados trabalhadores, e não violentos foras da lei. A classe média assistiu, discutiu e dormiu. Enquanto o crime for abordado como algo alheio à natureza da sociedade excludente, às relações antagônicas do mundo do trabalho e à redução das políticas públicas ao encarceramento maciço dos pobres, nada de relevante será produzido.


Não é uma questão de boa vontade, nem tampouco de arrumar uma vaguinha no circo; é uma questão política. O vídeo reprodutor do senso comum produzido por MV Bill acaba sendo uma metáfora de seu próprio esforço: nadou, nadou e morreu no sensacionalismo de uma tarde de domingo.

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Jornalista