Falcão, meninos do tráfico expõe duramente uma das faces mais cruas de nossa realidade – deveria causar profunda indignação a todos, e não há dúvida de que tem causado na maioria das pessoas, em se tratando de material tão polêmico e impactante.
Certamente o conseqüente lançamento do livro e do DVD do documentário, resultantes desse trabalho, confirmará tal impressão, além de poder despertar as consciências para a necessária mobilização em relação a esse grave problema.
Contudo, quem se deu ao trabalho de inquirir, questionar seus interlocutores, no trabalho ou em roda de amigos, sobre o assunto na segunda-feira (20/3) posterior à exibição pelo Fantástico do referido documentário pôde constatar que, apesar da repulsa e do choque iniciais, para muitas pessoas (pelo menos aquelas mais domesticadas à programação dominical) a atitude mais comum e fácil continua a ser a de fechar os olhos e os ouvidos a tal fratura social.
Talvez essa reação denote uma perniciosa distorção de valores, com características de egoísmo exacerbado e falta de cidadania. É mais cômodo, afinal, preocupar-se com os próprios problemas ou pensar que as coisas são assim mesmo, já que esse país não tem jeito. Entretanto poder-se-ia arriscar que esse comportamento seja revelador de uma mazela social ainda maior, explicitando um traço (nada lisonjeiro) de nossa propalada cordialidade, num grau de perversidade e permissividade esmagadoras.
O papel do jornalismo
Nesse contexto, porém, os meios de comunicação podem dar a sua mais valiosa contribuição, repercutindo o documentário e aprofundando as questões relacionadas ao problema, como forma de mobilizar a sociedade para que o assunto não desvaneça ou se banalize. É fundamental promover um debate permanente, sem perder o foco, uma vez que as eleições se aproximam, e sempre há os oportunistas de plantão, com soluções mirabolantes ou raivosas.
O problema, na verdade, é muito complexo (o que não desculpa a falta de medidas para solucioná-lo). Deve ser combatido em diversas frentes que contemplem questões relacionadas à moradia, ao acesso à saúde pública e à justiça, à distribuição de renda e principalmente a uma política educacional séria.
Quanto ao papel do jornalismo como prestação de serviço público, há perguntas que os meios de comunicação poderiam fazer (e cobrar) com mais veemência. (Recorde-se Tim Lopes).
Todos responsáveis
Afinal, quem financia as armas que esses meninos/falcões portam? Quem são os líderes/aliciadores do tráfico? Até onde se estendem os tentáculos do narcotráfico? Há participação de empresários ou de instituições? E a que ponto vai a conivência ou envolvimento do poder público? São questões delicadas, que merecem ser argüidas e respondidas – e a mídia pode servir de palco para esse debate, desde que não resvale na espetacularização nem se perca na fatuidade do olhar apático e preconceituoso.
Resta saber se o Fantástico dará seguimento (e espaço) a novas reportagens com diferentes enfoques sobre a criminalidade, violência e desigualdade social, já que não são temas agradáveis à audiência. E a mídia, de modo geral, será capaz de realmente promover um amplo debate nacional, tocando os pontos nevrálgicos desse imenso problema, dando um pouco de visibilidade e voz a quem não se sente parte de nada?
Todos somos responsáveis, de certa forma, quando nos negamos a perceber (e a admitir) a brutal realidade que nos cerca – já é tempo de refletirmos sobre nossas atitudes, em especial nossa cordial inércia.
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Funcionário público, Jaú, SP