Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A fantástica incoerência do Fantástico

A Globo está de parabéns por ter a coragem de exibir o documentário Falcão – Meninos do Tráfico no Fantástico de domingo 19, e mostrar como vive a maioria da população brasileira, em contraste com o que mostra nas novelas. Glória Maria convoca e ajuda os telespectadores a refletir sobre o tema. Apresenta a tragédia documentada trajando um ‘pretinho básico’ bordado de paetês, que provavelmente custa mais de R$ 500.

Sem querer, com o traje, ela também apresenta a causa de tudo isso. O valor de um único vestido é mais alto do que o dinheiro que aqueles meninos ganham por mês – entre R$ 350 e R$ 500, disseram. O trabalho não é fácil. Só para lembrar: três dos meninos entrevistados foram assassinados durante os meses de gravação do filme.

A incoerência de Glória e da Globo é também da própria ‘democracia’ que vivemos. Deveria ser do povo para o povo, mas na verdade é dos ricos para os ricos. Enquanto refletíamos, passava um comercial de carros novos – objeto de consumo para menos de 5% da população. Na peça de publicidade parece tudo fácil. Dá a impressão de que todos podem comprar. Menos eles, os meninos. São minoria? Claro que não. São os outros 95% da população.

Voltamos dos comerciais para ouvir outros meninos que nunca tiveram uma festa de aniversário, nunca foram ao circo e nunca ganharam um brinquedo de seus pais. Hoje o brinquedo deles é um fuzil. Por que passar na TV propaganda de produtos que apenas 5% da população podem comprar? A TV cria desejos, na grande maioria das vezes, impossíveis de serem realizados. Frustração. Revolta, reflito.

Para a TV refletir

O novo comercial indica que é muito fácil conseguir financiamento na Caixa Econômica para construir uma casa. Apresenta um belo imóvel, com extenso gramado, num condomínio de luxo. Algo muito diferente do barraco alugado na favela. Mais desejo, frustração e revolta. Terá de se arriscar mais, ser um grande bandido, porque o sonho do menino é dar uma casa à mãe que já sofreu tanto na vida para criá-lo. Aliás, ser bandido é a única chance que eles acreditam ter na vida, mesmo sabendo que vão morrer. O que importa? ‘Vou descansar’, desabafa mais uma criança vítima de todos nós consumidores, capitalistas, adoradores do dinheiro, da boa vida, do churrasco de picanha.

Enquanto refletimos, indignados, assistimos a mais um bloco de comerciais. Uma grande loja estimula mulheres a sair com a sacola cheia de roupas, ‘sem a consciência pesada’. Como podemos sair sem a consciência pesada, se as mães desses meninos não podem comprar nenhuma peça de roupa naquela loja, se eles mesmos não podem comprar um tênis, objeto de desejo e de necessidade? Sim, são atletas de muitas maratonas de tanto correr da polícia.

É, Glória. Não há dignidade nas favelas e não há dignidade na TV. A emissora que mostra o absurdo é a mesma que estimula esse absurdo. É fábrica de produzir desejos, porque o objetivo é o lucro. Os meninos assistem à malhação e sentem inveja daqueles mauricinhos e patricinhas com vida fácil e problemas fúteis. Assistem à novela das oito e sentem raiva da riqueza que não podem ter e que lhes parece tão normal. São levados a desejar, experimentam o grau máximo de frustração e são punidos exatamente por desejar e fazer tudo para ter.

Chegou a hora de a TV refletir sobre suas incoerências.

******

Jornalista