Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Balas perdidas e um velho samba

Sou jornalista, trabalho dentro de uma redação, mas todos os dias me vejo em meio a um cerrado tiroteio. As balas partem das notas que o apurador me encaminha, das matérias que os repórteres me trazem… E são muitas, muitas mesmo.

Quem mora no Rio tem a consciência de que habita uma cidade violenta. Mas não tem noção de metade do que realmente acontece nessa cidade.

O leitor pode até concluir: a culpa, então, é dos jornalistas. E eu replico. Sim e não. Como editor-chefe de um telejornal local filtro, obrigatoriamente, as informações desse tipo que vão ao ar. E existe um motivo primordial para que isso aconteça: trabalho com um espaço de tempo delimitado, o que me faz priorizar as notícias que podem (e devem) ir ao ar. São tantas as notícias de ações violentas que não há como não ter que optar por algumas delas.

Para um jornal impresso popular, que tenha como carro-chefe a violência urbana, não faltam pautas. As ocorrências de apenas um dia num grande centro como Rio ou São Paulo são mais do que suficiente para preencher uma edição inteira. E com farta variedade de crimes. Na televisão, porém, isso é impossível, mesmo em programas ‘jornalísticos’ voltados para o assunto.

O motivo deste artigo é justamente uma análise sobre essa seleção diária do que vai ou do que não vai ao ar. O jornalista acaba criando critérios de escolha. E sejam eles quais forem, com certeza são totalmente subjetivos. É como se fizéssemos um ranking da violência.

Vida real

É claro que a notícia de uma chacina com dezenas de mortos e/ou envolvimento de policiais militares é notícia. Mas não é a esses óbvios ululantes que me refiro. Falo das pequenas ocorrências. Do baleado ao reagir a um assalto, do roubo a caixas eletrônicos, do seqüestro-relâmpago de uma pessoa comum.

Qual critério usar? Qual a prioridade que deve ser dada? Só há notícia se houve morte? Se o valor roubado foi alto? Se a vítima ficou gravemente ferida? Para o editor-chefe, numa redação refrigerada, bem longe dos respingos de sangue, o que acaba valendo são estes critérios.

Fico pensando no que passa na cabeça de um parente, ou de um amigo, de qualquer uma dessas anônimas vítimas diárias da violência urbana ao ver que aquela morte, não noticiada, é apenas mais uma no caos da cidade grande; que o sofrimento daquela vítima e de uma família inteira não vale uma linha publicada. Imagino o quão duro deve ser ver que aquela vida se perdeu e que, fora as pessoas mais próximas e um burocrático escrivão de delegacia, ninguém mais ficará sabendo do que aconteceu.

Trabalhar com noticiário local, num grande jornal ou na produção de um noticiário de TV, nos expõe em demasia à realidade crua da violência e, de certo modo, por uma questão de sobrevivência, acabamos criando uma carapaça, uma capa protetora que impede o impacto constante de tantas maldades.

Às vezes me pego comentando, até com certo desprezo, uma notinha que fatalmente se destinará à lixeira. Mas, graças a Deus, ainda me policio e lembro que aquilo é um pedaço da vida real. Afinal, por trás daquelas frases há um fato, e naquele fato o sofrimento de alguém.

Só que, como já dizia o velho samba de Luís Reis e Haroldo Barbosa, ‘a dor da gente não sai no jornal’.

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Editor-executivo do programa Observatório da Imprensa na TV, editor-chefe do telejornal local do SBT no Rio de Janeiro e professor da Faculdade de Comunicação da UERJ