A finalidade que deveria perseguir uma revista pretensamente de divulgação científica, mesmo dirigida apenas ao público em geral, deveria ter o nível de relevância de suas informações, para que seus leitores possam utilizá-las. Deve o editor ponderar sobre o que leva ao leitor: absurdos ou informações que o ajudarão a tomar decisões melhores. Isso é que dá a uma revista sua fama de boa qualidade editorial. Não podemos ser niilistas e tratar dos assuntos como se não pudéssemos descobrir os fatos, e considerar tudo igual, com mesmo valor, a defendermos que só existe uma pessoa honesta, que o mundo todo é corrompido. Este foi o ensinamento da ciência, um método para se descobrir os fatos.
Não podemos, como fez o artigo ‘Medicina faz mal à saúde’, da Superinteressante, generalizar, e dizer que o único objetivo da imprensa de divulgação científica seja apenas ganhar dinheiro com sensacionalismo barato. Mas a revista, depois que mudou de direção, há alguns anos, passou a ser uma publicação de conteúdo discutível. Na época em que cancelei minha assinatura a revista publicava uma coluna chamada Superpolêmica. Nela, um ilustre desconhecido, profissional da área de farmácia, combatia o uso de vacina, embasado na qualidade de ter ‘médicos’ na família. Como ficam os leitores que deixaram de vacinar os filhos achando que estavam fazendo uma coisa muito moderna? Uma coisa superinteressante: duvidar da existência da paralisia infantil, que tanto esforço o governo despendeu para conseguir erradicar.
Gratuidade alarmante
O artigo foi republicado no OI. Vazio de embasamento, alarmista, uma série de comentários falsos. Trata-se de uma entrevista com o escritor de ficção Vernon Coleman. Em seu site, que promove seus livros, refere ter trabalhado na Open University no Reino Unido e como professor honorário de Medical Sciences da Open International University, situada no Sri Lanka. Prolífico vendedor de livros, com mais de 90 títulos de ficção e não-ficção. Portanto, tirando sua grande capacidade literária, não temos mais informações sobre sua experiência do que os primeiros 10 anos em que tentou ser médico, antes de se dedicar aos lucrativos negócios editoriais.
Mais ao gosto de revistas que não primam por uma linha editorial mais consistente, Super inclui em fevereiro esta crítica à medicina científica moderna com o mesmo fulcro em que o entrevistado se baseia: a opinião pessoal. Usa como referência do prejuízo da prática médica à população a ocorrência de três greves, em cujo período teria diminuído a mortalidade, como evidência de uma verdade. Ora, as greves são geralmente curtas, e as conseqüências delas deveriam ser medidas em tempo maior de observação. Um paciente com fratura de quadril, um traumatizado em acidente, um paciente que precise de transplante renal ou cardíaco podem não ser operados por algum tempo, mas as conseqüências deste adiamento, se por tempo indefinido, aumentarão em muito os danos. Não se pode acreditar que seriam mais bem tratados com chá de camomila ou reza forte. Ou simplesmente crer-se que câncer não mata se nos nutrirmos bem, pois só morrem os que ‘querem’.
Comparando países do Terceiro Mundo, vemos uma enorme diferença entre os índices de mortalidade infantil, materna e geral. Mas é muito difícil separar os fatores sociais, que também são determinantes de uma mortalidade maior, e a prática médica faz parte desta melhoria.
Nosso entrevistado afirma que ‘os médicos deveriam ver seus pacientes como membros da família. Infelizmente, isso não acontece. Eles olham os pacientes e pensam o quão rápido podem se livrar deles, ou como fazer mais dinheiro com aquele caso. Prescrevem remédios desnecessários e fazem cirurgias dispensáveis’. Mas é de uma gratuidade alarmante a afirmação irresponsável. Poder-se-ia devolver a leviana opinião de que ele apenas quer fazer sensacionalismo para vender seus livros na base do terrorismo de informação. Afinal, é mais fácil descobrir-se a intenção de uma pessoa do que generalizar-se o comportamento de milhões de médicos no mundo que trabalham pela boa medicina. E é certo que muito poucos médicos no mundo podem morar na Inglaterra e ter uma cobertura em Paris.
O Sr. Coleman nada mostra
Esta argumentação falaciosa exige base maior para ser demonstrada. Afinal, se não fossem as pesquisas farmacêuticas ainda estaríamos esperando o tratamento para muitas patologias tratadas hoje em dia. As verbas públicas, principalmente no Terceiro Mundo, não se fazem presentes. Mesmo para a rede básica de saúde não conseguem suprir nem o tratamento primário.
Demonstrando sua confusão, ele diz que ‘em diversas partes do mundo, cada vez mais gente procura práticas alternativas em vez de médicos ortodoxos’. Já tivemos oportunidade de referir, neste espaço, que ortodoxo se refere a crenças que se baseiam em dogmas, e isso é qualidade da medicina tradicional chinesa, da acupuntura, da homeopatia, da medicina ayuvérdica – todas baseadas no esoterismo anticientífico. Nada na moderna medicina científica se usa por ortodoxia, tradição ou por ser ‘oficial’. Usam-se os tratamentos e medicamentos baseados nos mecanismos das doenças e de sua ação farmacológica. Ao mesmo tempo em que iguala as propostas de alternativas à medicina científica, esquece por completo que nem mesmo há análises e avaliações de resultados de suas afirmações. São afirmações graciosas.
Trava uma meritória luta contra o uso de animais em pesquisa, defendendo que testes de remédios deveriam ser feitos em culturas de tecidos humanos. Além de errada a informação (pois este modo é usado sempre que compatível), mostra uma certa confusão em sua visão ‘holística’. Como seria possível apenas uma cultura de tecido para teste de medicamentos, que devem agir num corpo integrado em todos os seus sistemas? Mais uma vez generaliza que o interesse seriam os altos lucros das companhias de medicamentos. Por isso usariam animais. Parece que o único que não pensa em lucro é nosso ex-médico desinformado. A eliminação de animais da pesquisa é uma questão angustiante. Mas quem tem um filho que se beneficia de um tratamento desenvolvido por este meio deixaria de querer vê-lo aliviado? E este só é dilema para quem vivencia o problema.
A alimentação realmente resolve muita coisa. Previne muita doença. Mas, e aqueles que não seguem as dietas? É sabido que o hábito é comportamento difícil de alterar. Basta ver os resultados obtidos em dietas para emagrecer ou para baixar colesterol. Supor uma mudança nacional de hábitos alimentares de uma hora para outra é pueril. Então, não se resolverá o problema em pouco tempo, e medidas podem ser tomadas, para quem assim o deseje. E os que padecem destes males da má dieta, do uso do tabaco, do estresse ainda encherão as emergências cardiológicas por muito tempo. Estima-se que um grande número de pacientes que, submetidos a cirurgias de ponte de safena, venham a recidivar em 10 anos, pois passados os primeiros meses após o trauma da cirurgia voltam a sua dieta adquirida por décadas. Na última década, nos EUA (e no Brasil), os índices de obesidade só pioraram, como um exemplo. Seria melhor que o Sr. Coleman estivesse clinicando e tivesse números para nos mostrar.
Remédio não é modismo
Nosso entrevistado da Super comenta que na época em que praticou medicina tinha colegas que ‘não sabiam nada sobre exames laboratoriais ou aparelhos de raio X, e mesmo assim faziam diagnósticos perfeitos’. Ora, baseado em que pode afirmar que faziam estes diagnósticos ‘corretos’, a não ser se comprovados posteriormente em laboratório? O embasamento da avaliação apenas no exame físico e entrevista do paciente (anamnese) barateia o atendimento. Mas perde-se em acurácia e precocidade de diagnóstico, o que, do ponto de vista pessoal, pode resultar em maior dano ao paciente e pior resultado de tratamento a posterior. Podemos exemplificar com a mamografia: quando a paciente detecta o nódulo na mama, ou o médico o reconhece, já vinha evoluindo há muitos meses, e a chance de se ter espalhado para os linfonodos é muito mais provável. A endoscopia digestiva tornou o tratamento mais precoce e os danos menores. Acho difícil que alguém gostasse de perder a chance de ser curado para economizar tecnologia, ou deixar que o médico ‘adivinhasse’ o que se passa em seu estômago, só conversando, dando batidinhas com o dedo na sua barriga e a recomendação de voltar no ano seguinte se piorar.
As informações que os médicos utilizam sobre remédios não são advindas só dos laboratórios, que devem cumprir rigoroso caminho, que dura anos, para fazer chegar finalmente ao balcão da farmácia o medicamento. Tal fato se evidência no enorme gasto que têm os médicos para participar de congressos e cursos de atualização. Existe nos EUA o FDA (Federal Drug Administration), instituição que monitora as drogas, determinando processos para sua liberação e fiscalizando seu uso. E qualquer médico pode usar estas informações e basear-se no aval da agência ao prescrever. As revistas especializadas em medicina também cumprem este papel, de criticar e avaliar tratamentos e medicamentos conforme o resultado obtido.
No Brasil temos a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que caminha para este rumo, mas claro que isto dependerá de recursos governamentais e da importância que a imprensa dê a este trabalho, para formar a opinião pública, como algo de fundamental importância para a atividade de saúde, para que os políticos coloquem em suas agendas. Assim como cobrar da Anvisa que realize seu trabalho.
Trata-se, lamentavelmente, de mais um artigo que depõe contra a qualidade da imprensa, com falta de critério maior de crítica, mais assustando e criando falsas verdades, muito agradáveis aos olhos de quem busca sensacionalismo, mas de uma primariedade preocupante. Em nada ajuda o leitor este tipo de abordagem, se não for, no mínimo, acompanhada de uma crítica das opiniões. Não fornece informação que ajude o leitor a tomar decisões sobre sua saúde, mas o confunde mais e o deixa inseguro. Claro que o objetivo de vender está garantido, mas o de ser cientificamente informativo falhou por completo.
Ah, eu também não tomo remédios, pois não são coisas da moda. Mas não deixaria de fazê-lo quando deles precisasse realmente. Só se deve ser hospitalizado quando se está enfermo. Neste caso, o risco da hospitalização deve ser confrontado com o da evolução da doença.
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Médico, Porto Alegre