Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

E agora, caro colega? – 3

Uma das coisas que mais impressionam na grande mídia brasileira é o caráter serviçal que ela tem em relação às agências internacionais de notícias. Como não há mais correspondentes estrangeiros, são poucos os veículos que ainda mantêm e utilizam esse profissional da imprensa, a maioria das informações divulgadas fora do país vem das agências, de articulistas estrangeiros ou sob a forma de uma ‘grande salada’ de informações oriundas das agências, identificadas como ‘Da Redação’ na maioria das vezes. Pegam-se informações daqui e dali, junta-se tudo, dá-se uma redação razoavelmente inteligível e pronto. Sirva-se à vontade.

Um bom exemplo desse procedimento caseiro tem sido as notícias sobre os três anos de conflito e ocupação militar no Iraque. Salvo a web e alguns poucos veículos de imprensa, quase tudo que foi divulgado na grande imprensa tupiniquim veio das agências internacionais, que por sua vez, pelo conteúdo publicado, praticamente só usaram informações oficiais dos governos dos EUA e da Inglaterra – releases, entrevistas com políticos do governo, militares, representantes de instituições destes dois países etc. As informações divulgadas pouco ou nada divergem entre si, independentemente do veículo que a divulgou, o que apenas reforça que a fonte original foi a mesma. Pequenas variações, para mais ou para menos, como gostam de enfatizar os institutos de pesquisa, não invalidam essa percepção.

Grande manipulador

De maneira geral, quase todas matérias enfatizam a possível guerra civil que o Iraque estaria enfrentando e o papel saneador que as forças de ocupação estariam cumprindo. A preocupação tem sido a de mostrar que xiitas e sunitas, sem falar nos curdos, estão a um passo para se destruírem mutuamente. E que a presença militar dos EUA no Iraque, sob as ‘ordens’ do atual governo eleito, junto com a recém-criada força militar iraquiana, seriam a única forma de se evitar esse confronto. Ou então, como escreveu o jornalista ianque Thomas Friedman, colunista do New York Times – que vira-e-mexe tem suas matérias assinadas traduzidas nos jornalões brasileiros –, na matéria ‘Irã x Iraque’, caderno Mundo da Folha de S. Paulo do dia 18 de março, para fazer frente à ameaça que o Irã representaria na reconstrução ‘democrática’ do Iraque – sempre sob a ótica dos EUA, é claro –, o governo Bush não deveria sair do país árabe antes de resolver toda a problemática existente.

Terem sucesso no que se propuseram a fazer no Iraque seria ainda melhor. A única estratégia que não funcionaria para nós, mas que seria ideal para o Irã, seria que as tropas americanas permanecessem no Iraque como alvos fáceis a serem atingidos, servindo de babás do impasse e absorvendo o ódio e o ressentimento de todos – inclusive o ressentimento que, normalmente, seria dirigido contra Teerã.

Como se lê, Friedman ainda sugere que o atual ressentimento existente no Iraque contra os EUA e a ocupação militar possa ser desviado para o Irã, caso dê certo a ‘restauração democrática’ imposta aos iraquianos. Outra pérola no texto é a seguinte:

Mas, assim que deixarmos o Iraque – e isso é algo em que você pode apostar sua casa e seus filhos –, a rivalidade natural entre árabes iraquianos e persas iranianos voltará à tona. Cultura, história e nacionalismo têm peso, sim. Irã e Iraque não travaram uma guerra de oito anos por engano, ou apenas porque Saddam estava no poder.

Friedman, que se coloca como um ‘expert’ do Oriente Médio, sintetiza os oito anos de guerra entre Irã e Iraque, que produziu 1 milhão de mortos e 1 milhão e meio de feridos dos dois lados, numa pequena frase de efeito. Esse cara é um grande manipulador, isso sim!

Outras versões

Não escreve nada, absolutamente nada sobre como os países do Primeiro Mundo, em especial os EUA, incentivaram e armaram os dois países, inclusive com armas biológicas – as tais de destruição em massa (ADM) – que tanto furor causaram, e ainda causam, na imprensa mundial. O Irã, recém-independente dos EUA sob a liderança do aiatolá Komeini, não podia se sobrepor ao Iraque do ditador Saddam Hussein, na época aliado inconteste dos interesses americanos no Oriente Médio. Se isso acontecesse, o frágil equilíbrio geopolítico na região, amparado militar, política e economicamente pelos EUA e seu aliado histórico Israel, poderia ser alterado pela presença de um Irã forte, liderando revoltas em outras nações ricas em petróleo no Oriente Médio, além de apoiar maciçamente a causa palestina.

Isso não poderia acontecer de maneira nenhuma e a solução foi a guerra entre os dois países. E foi o que aconteceu, mas as pessoas não foram, e continuam não sendo, devidamente informadas pela grande mídia internacional, repercutindo na grande mídia brasileira de então, e ainda hoje, quais foram as reais causas dessa sangrenta guerra entre os dois países do Golfo.

Se o que se espera da imprensa é ética, responsabilidade social e equilíbrio na divulgação das notícias, qual a razão para não se ir atrás de mais informações, de outras versões que não apenas a oficial, em qualquer pauta? Não é apenas uma questão de contrato comercial entre os veículos da imprensa brasileiros e as agências internacionais. Hoje, na web, há uma série de sítios informativos que reproduzem matérias de vários jornalistas do mundo todo, trazendo outros pontos de vista, outras informações. Por que não utilizar estas informações naquela salada mista ‘Da Redação’, por exemplo? Para o leitor, ouvinte ou espectador, com certeza, seria muito bom. Haveria uma riqueza de análises, de opiniões de outros jornalistas envolvidos com este ou qualquer outro tema controverso.

Difícil confiar

Na falta de correspondentes, que em princípio poderiam aprofundar temas in loco, fazendo reportagens mais detalhadas e informativas, aproveitar o que é divulgado na web só traria vantagens para todos, inclusive recuperando a credibilidade da mídia brasileira que anda muito baixa, em especial da imprensa escrita. Por que não traduzir reportagens de outros jornalistas estrangeiros com uma outra visão do que acontece no Iraque ocupado, por exemplo, ou mesmo no Irã, na Palestina etc.? Por que só usar articulistas de jornais como NYT, Washington Post, Financial Time, Le Monde etc.? Será que nada de interessante é veiculado mundo afora que não seja nestes veículos consagrados?

O que se nota na imprensa do Brasil é uma mesmice muito grande, de maneira geral. Uma pasteurização, onde tudo é igual, às vezes até nas manchetes, nas primeiras páginas, com as mesmas fotografias e textos parecidos. E pior: isso acontece com assuntos nacionais relevantes, contraditórios, questões de fundo, estruturais, onde se espera maior e mais profunda cobertura. E o que se lê, ouve e se vê são as mesmas coisas, repetições, quase que como se as informações tivessem saído de um mesmo lugar, feitas pela mesma pessoa, apenas modificada segundo a edição deste ou daquele veículo de imprensa.

Fica difícil confiar na imprensa desse jeito. E é o que está acontecendo numa evolução assustadora. Imprensa sem credibilidade abre espaço rapidamente para a destruição de qualquer sociedade democrática. Isso já aconteceu muitas vezes. O preço é muito alto. Quem paga?

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Jornalista