Os jornais e as tartarugas
É muito popular entre jornalistas a anedota segundo a qual determinado senador, encarregado de cuidar de duas tartarugas, sempre deixa escapar uma delas.
Pois a imprensa brasileira virou personagem da anedota: mergulhados nas cidades onde as fortes chuvas provocaram as catástrofes na virada do ano, os jornais deixaram escapar um punhado de assuntos importantes, e agora tentam compensar os seus leitores.
Passaram sem atenção novos abusos do Congresso com o dinheiro público, a estréia do Brasil no Conselho de Segurança da ONU – em uma cadeira ainda provisória – e alguns detalhes da economia, como a queda na produção industrial e o saldo negativo nas reservas financeiras internacionais.
Ainda com relação às tragédias de Angra dos Reis e Ilha Grande, os jornais demoraram dias para assumir que o governador do Rio, Sérgio Cabral, deveria dar explicações sobre seu decreto, de junho de 2009, que tornou mais flexíveis as normas para construções em áreas de preservação.
A falta de interesse da imprensa deu ao governador tempo suficiente para voltar atrás e suspender os efeitos do decreto, determinando estudos mais sérios sobre as condições dos terrenos nas encostas da região.
Nem mesmo a informação de que o governo do Rio havia reduzido a previsão de investimentos no controle de inundações, revelada nesta quinta-feira, vai servir para questionar as responsabilidades do governador na tragédia, porque a fila anda e o assunto começa a escorregar das manchetes para espaços menos relevantes dos jornais.
Com a atenção concentrada nos acontecimentos fatídicos provocados pela combinação das fortes chuvas com a incúria das autoridades – que, claramente, privilegiam a especulação imobiliária em detrimento dos interesses da população – ficam mal explicados outros assuntos que também ajudam o leitor a conduzir suas vidas.
Certos temas que ficaram em segundo plano voltam agora a ocupar espaço na imprensa, mas quem precisava de mais informações para tomar decisões acaba prejudicado.
Uma tartaruga está bem segura. As outras escapuliram.
Sem licença para prevaricar
Sabe-se que o Senado Federal aproveitou a desatenção do público para consolidar alguns privilégios que foram causa de tanto escândalo no ano passado, por conta de medidas secretas e outras maracutaias.
Soube-se, por exemplo, que a Mesa do Senado liberou “restos a viajar”, autorizando os senadores a utilizar neste ano o saldo das cotas de viagem não usadas em 2009.
Nesta quinta, os jornais tentam recuperar o atraso colocando suas lentes novamente em Brasília, e o Globo chega a publicar um minieditorial, aletando que o fato de o Senado ter deixado de aparecer com freqüência no noticiário de escândalos brasilienses “não significa uma licença para prevaricar”.
Ainda sobre escândalos de Brasília, também escapou da atenção dos jornais a manobra do governador José Roberto Arruda, apanhado em flagrante no esquema de propinas, fartamente documentado por gravações em vídeo.
Arruda tenta reduzir a pressão sobre seu grupo estendendo as responsabilidades para seu antecessor, o notório senador Joaquim Roriz, que desponta como candidato preferido à eleição para governador do Distrito Federal neste ano.
A disputa pode ajudar a imprensa a esclarecer os eleitores brasilienses sobre a escolha que estão prestes a fazer.
Afinal, se a corrupção ainda é motivo para repudiar certos candidatos, torna-se ainda mais importante apanhar as informações oferecidas por Arruda e investigar mais profundamente as origens do esquema.
Mas a imprensa parece satisfeita com a presa que já tem em mãos, e não demonstra muito interesse em esclarecer a origem do escândalo.
As notícias da economia também andaram prejudicadas pelo esforço concentrado na cobertura das catástrofes provocadas pelas chuvas.
Publicados de forma ligeira, os números da queda na produção industrial, apresentados inicialmente como indicadores negativos, revelam na verdade uma mudança no viés das empresas.
Reduziram-se as encomendas de bens de consumo duráveis, como as do setor automotivo, que haviam crescido 107% entre janeiro e outubro.
Por outro lado, aumentou a produção de bens de capital, principalmente de máquinas e equipamentos, o que demonstra a disposição das empresas de continuar investindo em expansão.
A imprensa precisa contextualizar essas informações.
Agora que as enchentes deixam as manchetes, espera-se que os jornais recuperem as outras tartarugas.