Thursday, 28 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

>>A derrota dos vencedores
>>Nossa guerra ignorada

A derrota dos vencedores

Observado do ponto de vista estritamente militar o conflito na Faixa de Gaza, o Estado de Israel está impondo uma derrota histórica ao grupo Hamas.

O noticiário da imprensa e as estatísticas publicadas pelos jornais não deixam dúvida quanto ao massacre que significa o número de mortos – que no lado palestino passa do milhar e entre os judeus não chega oficialmente a uma dezenas de soldados, alguns dos quais atingidos por suas próprias forças, o chamado ‘fogo amigo’.

Mas há outras leituras possíveis dos fatos.

No campo da opinião pública, onde as guerras acontecem com palavras e imagens, as cenas de crianças mortas e hospitais bombardeados superam em muito o impacto daquilo que é aceito como a causa do conflito: as atividades terroristas do grupo Hamas.

São raras as cenas em que aparecem militantes do grupo, embora sejam considerados os verdadeiros combatentes do lado palestino.

O que se vê na imprensa todos os dias são retratos da população civil, à qual pertencem, segundo os jornais de hoje, 65% das vítimas fatais.

A imprensa já noticiou que os militantes armados se misturam à multidão, dificultando aos adversários a identificação dos alvos – o que explicaria, sob o ponto de vista estritamente militar, os constantes erros da artilharia israelense.

Explicaria, mas não justificaria.

Na chamada grande imprensa, que não pode ser acusada de simpática com os atos terroristas do Hamas, os fatos colocam o Estado de Israel em desvantagem pela própria evidência de que as ações militares não levam em conta a mais remota preocupação com a questão humanitária.

Já se acumulam na contabilidade dos erros pelo menos cinco escolas, dois hospitais e, ontem, o depósito da ONU onde eram estocados alimentos para grande parte dos 1,5 milhão de palestinos acuados entre as forças em combate.

Nenhum dos grandes jornais tenta ao menos explicar o ataque às instalações da ONU e todos eles reproduzem as manifestações de condenação vindas de praticamente todas as partes do mundo.

Na mídia digital, que no atual conflito joga um papel fundamental na divulgação dos acontecimentos, o Estado de Israel perde a guerra, na medida em que uma ampla e ativíssima rede de comunicação contata diretamente moradores de Gaza com a opinião pública de todo o planeta, expondo a tragédia humanitária que se agrava a cada dia.

Em algumas dessas redes, é grande o número de cidadãos judeus que se manifestam condenando a violência militar.

Parte dessas informações acaba chegando aos jornais e emissoras de televisão, influenciando o viés do noticiário.

Comparada aos conflitos anteriores, a guerra deste ano no Oriente Médio traz essa novidade: o exército mais poderoso está perdendo a luta pela conquista dos corações e mentes.

Efeméride:

O dia de ontem, registrado hoje nos jornais, foi o 19 de Kislev do ano 5.769 no calendário judaico, ou 15 de janeiro de 2009 no calendário cristão.

Marca a data da morte do rabino e filósofo Maimônides, ocorrida no ano 1204 da era cristã.

Maimônides é considerado um dos fundadores do judaísmo moderno e um dos grandes pensadores de todos os tempos.

Ele viveu e construiu sua obra, livremente, na Espanha sob domínio muçulmano.

O Estado de Israel não representa necessariamente a sociedade sonhada por Maimônides, chamado pelos judeus de Rambam.

As tribos tiranizadas por fanáticos religiosos que proliferam entre os povos árabes e palestinos não têm relação com a sociedade islâmica e multicultural que vicejou na Península Ibérica.

Mas não custa lembrar.

Nossa guerra ignorada

A imprensa brasileira tem olhos e ouvidos para o outro lado do mundo, certamente porque o efeito visual e o impacto das notícias chama mais atenção.

Mas uma guerra ainda mais violenta do que todos os conflitos no Oriente Médio acontece diariamente em nossas cidades, sem que a mídia lhe reserve mais do que o registro factual e eventuais estatísticas.

Luiz Egypto, editor do Observatório da Imprensa:

– A maciça cobertura da mídia sobre a guerra na Faixa de Gaza, com todos os seus dramas e horrores, não encontra paralelo na atenção que os principais veículos de comunicação brasileiros dão ao acompanhamento jornalístico da violência que ocorre embaixo dos nossos olhos, no nosso quintal. Nesse tema, a mídia oferece tão-somente uma cobertura burocrática, pontual, raramente – mas muito raramente – estimulando o debate público sobre as causas da mortandade em nossas cidades.

Esta é uma das conclusões do pesquisador Robson Sávio Reis Souza, do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da Universidade Federal de Minas Gerais, em artigo na edição online deste Observatório [ver ‘A Faixa de Gaza é aqui’].

Diz ele: ‘Os horrores das guerras em outros países parecem ofuscar a carnificina humana que dizima milhões de vidas no Brasil a cada ano. Parece algo proposital como a barbaridade alheia, noticiada em doses cavalares pela mídia, serve para anestesiar o pouco que resta da nossa sensibilidade em relação às mortes em nosso país’.

Com uma taxa geral de homicídios que chega a 25,2 por cem mil habitantes, o quadro se agrava quando se extraem os números de homicídios entre os jovens brasileiros: 51,6 por cem mil habitantes, a quinta posição mundial de um ranking macabro. Cerca de cem mil vidas se perdem anualmente no país por conta de homicídios e mortes no trânsito. É uma guerra à qual a mídia não pode ficar alheia. O registro factual não basta. É preciso aprofundar o tema e estimular governos e a sociedade a pôr fim a essa sangueira.