O Brasil na contramão
A manchete da edição de hoje do Estado de S.Paulo relata que a política industrial do Brasil privilegia a indústria de automóveis.
A reportagem dá conta de que o setor automobilístico é o destino de 53% dos incentivos fiscais definidos na política industrial recentemente anunciada pelo governo.
Ainda antes da aprovação das novas regras, que foram festejadas pela indústria nacional como um todo, o setor já vinha anunciando recordes históricos de produção e lucros.
A notícia é resultado de análises periódicas que o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (IEDI), distribui a jornalistas.
Os detalhes selecionados pelo jornal apontam principalmente para a contradição entre a política industrial real e as intenções anunciadas pelo governo: os setores industriais mais intensivos em mão-de-obra, que poderiam ser incentivados a aumentar a oferta de empregos, ficam em terceiro lugar na lista de benefícios.
Há ainda um aspecto que o Estadão deixa de lado, mas que certamente interessaria a muitos leitores: na maioria dos países desenvolvidos, a escolha pelo transporte individual está sendo desestimulada pelas políticas públicas, por causa do risco que representa para as economias nacionais a tendência de aumento no preço dos combustíveis.
Além disso, mas em primeiro lugar, a imprensa deveria estar alertando a população e o governo para o fato de que em todas as grandes cidades brasileiras o número excessivo de automóveis está associado a problemas de saúde, de segurança e principalmente representa um fator de agravamento da poluição ambiental.
Especialistas alertam há tempos que São Paulo tem data para ser bloqueada num congestionamento gigantesco, daqui a quatro anos.
Não há razões plausíveis para o governo colocar entre suas prioridades o incentivo a uma indústria cujo crescimento sem limites é associado à queda na qualidade de vida e que resiste a adotar inovações para se adaptar às urgências provocadas pelas mudanças climáticas.
A não ser, claro, o fato de o presidente Lula da Silva ter sido torneiro-mecânico na sua juventude.
A reportagem do Estadão mostra que a estratégia do governo para estimular a economia vai na contramão das tendências internacionais.
Mas o jornal perde a oportunidade de lembrar aos leitores que o combate aos efeitos do aquecimento global precisa ser feito todos os dias, não só através de políticas públicas mas principalmente por meio da ação consciente de cada cidadão.
A bancada da bala
O Estado de S.Paulo informa que o Senado Federal aprovou uma medida provisória que contraria o espírito definido no Estatuto do Desarmamento: a proposta concede anistia geral para quem tem arma de fogo sem registro.
A versão digital do Globo tinha reportagem sobre o mesmo tempo, mas ela foi suprimida na edição distribuida aos assinantes.
A Folha de S.Paulo não considerou importante a notícia.
A notícia, completa, dá conta de que a medida aprovada reverte boa parte das legislação que foi amplamente debatida na sociedade e que conduziu ao referendo realizado em outubro de 2005.
As mudanças propostas pelo Executivo na Medida Provisória 417, aprovada ontem pelos senadores, permite a qualquer pessoa registrar uma arma, sem pagar nada, até o dia 31 de dezembro.
Além disso, prevê maiores facilidades para o registro, que poderá ser feito provisoriamente pela Internet, e reduz de 300 reais para 60 reais a taxa estabelecida originalmente na regulamentação do estatuto.
A medida será sancionada pelo presidente da República e, assim como sua aprovação no Senado, não deverá despertar o interesse da imprensa.
No entanto, muito certamente os jornais continuarão chamando atenção para as notícias de crimes com armas de fogo envolvendo cidadãos comuns, muitos dos quais sem antecedentes criminais.
Hoje, por exemplo, os jornais dão destaque para a prisão do comerciante Ismael Vieira da Silva, que confessou ter assassinado com um tiro na nuca o estudante Alexandre Andrade Reyes, de apenas dezoito anos, por causa de uma discussão no trânsito em São Paulo.
Os jornais não facilitam ao leitor a conexão entre os diversos fatos do dia, mas não há como evitar a relação entre uma política industrial que estimula o entulhamento das ruas das cidades com automóveis, o que aumenta a tensão social, e a flexibilização das regras para a propriedade de armas de fogo.
Se os governantes não enxergam certas relações, cabe à imprensa levantar as questões que indicam escolhas controversas em políticas públicas.
Apenas para registrar: o assassino do estudante prestou depoimento, confessou o crime e foi liberado.
A imprensa não informa o detalhe, mas segundo a praxe policial sua arma deve ter sido apreendida para compor o inquérito.
Mas ele pode comprar outra hoje mesmo.