Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A utopia que deu certo

Diante da caudalosa antologia de O Pasquim, com a seleção do melhor publicado entre 1969 e 1971, difícil é saber por onde começar. Qualquer página que o leitor abra ao acaso vai estampar doses maciças de humor, verve, anarquia e inteligência em elevados decibéis. Não era para menos. Para cutucar com vara curta a sisudez e a truculência dos milicos que mandavam no país naquela época, o histórico hebdomadário acabou formando uma espécie de time dos sonhos. Quantas redações puderam contar com um plantel que incluía Ivan Lessa, Paulo Francis, Ziraldo, Jaguar, Luiz Carlos Maciel, Tarso de Castro, Millôr Fernandes, Sérgio Cabral e Sérgio Augusto? E colaboradores como Vinicius de Moraes, Glauber Rocha, Moacir Werneck de Castro, Chico Buarque, Otto Maria Carpeaux, Dalton Trevisan, Rubem Fonseca etc., numa lista ampla e estelar?

Melhor mesmo é começar pelas apresentações de Jaguar e Sérgio Augusto, organizadores desse primeiro volume. Segundo Jaguar, o Pasquim nasceu de uma reunião entre ele, Tarso de Castro e Sérgio Cabral. Precisavam substituir o tablóide de humor A carapuça, cujo responsável era Sérgio Porto, que acabara de morrer. Definida a idéia, veio a dificuldade para a escolha do nome. Ganhou ‘Pasquim’, sugerido por Jaguar, que hoje mora em Brasília. Marco zero do ato porra-louca: setembro de 1968.

No bico

Foram editados 1.072 números – assim mesmo, nada cabalístico, pois as coisas no Pasquim nunca funcionaram redondamente. Tudo acabou em 11 de novembro de 1991. O Pasquim sifu com 22 anos, ou seja, uma idade provecta, dadas as condições insalubres nas quais existiu: AI-5, tortura, censura – aquelas coisas. Ah, não adianta correr pro dicionário para sabe o significado de sifu. Trata-se de criação de Luis Carlos Maciel, e passou a ser utilizada na linguagem diária, ao lado de modismos como ‘barato’, ‘curtir’, ‘sarro’ e outros vitupérios devidamente cifrados como nusfu e duca. Com a censura não se brincava.

Mas as novidades introduzidas pelo Pasquim não se restringiram apenas a esses modismos. A entrevista com Ibrahim Sued já estava pronta (a primeira do Pasquim) quando Tarso de Castro e Sérgio Cabral bateram os olhos nela. ‘Tem que fazer o copidesque’, orientaram. Jaguar, que a havia transcrito, desconhecia o termo. Como não deu tempo, a entrevista foi publicada do jeito que estava. ‘E foi assim que, repito, por acaso, o Pasquim tirou o paletó e a gravata do jornalismo brasileiro’, escreveu Jaguar.

Para escapar da censura, tentavam-se uns dribles. Pôr astericos (inaugurados quando da célebre entrevista com Leila Diniz) em lugar dos palavrões foi um deles. No começo, conseguiram levar no bico uma censora que durante algum tempo pousou na redação. A mulher deu bandeira demais e acabou substituída por um linha-dura dos militares. Resultado: um belo dia a redação foi para a prisão. O jornal continuou sendo editado aos trancos e barrancos por Millôr Fernandes, que escapou. Com uma corrente pra frente de colaboradores, o Pasquim manteve-se de pé.

Charme e erudição

Pense no maior fenômeno editorial da imprensa no Brasil. Para Sérgio Augusto, o título cabe hors-concours ao Pasquim. ‘E não adianta discutir. O Cruzeiro? Tinha atrás de si uma poderosa empresa jornalística, os Diários Associados, de Assis Chateaubriand. Veja? Ora, veja. Com a editora Abril bancando a aventura, modéstia à parte, até eu. Atrás de O Pasquim só havia um punhado de porras-loucas’, escreveu Sérgio na apresentação. ‘Assumidamente nanico, moleque, paroquial e abusado, nasceu sob a suspeita de que duraria pouco tempo’, continuou.

As suspeitas não eram infundadas. Da chamada imprensa alternativa da época, ninguém sobrou para contar a história. Um a um, os nanicos foram tombando vítimas de embargo dos militares, asfixia financeira e outros problemas. Não deveria ser diferente com o Pasquim. ‘Onde já se viu um jornal sem patrão, onde todos os colaboradores podiam escrever o que bem entendessem e como bem entendessem? Pois a velha utopia de dez em cada dez jornalistas revelou-se, mais do que factível, um sucesso – fulminante e retumbante’, escreveu Sérgio Augusto. Mas o Pasquim deu certo. E só funcionou, segundo Sérgio, porque foi editado no Rio, como um produto típico de Ipanema.

Pois agora o leitor tem a oportunidade de ser um hóspede dessa utopia. Aí está o Volume I com o melhor das 150 primeiras edições do Pasquim. Se o leitor estiver na casa dos enta, terá a chance de matar a saudade de um tempo em que a crítica cultural tinha charme, texto e erudição. Se for um aluno dos cursos de Jornalismo que pululam Brasil afora, poderá ter em mãos um exemplo de paixão pela profissão exercida ao extremo.

Mais 3 volumes

O moço ou a moça quer ler um perfil admirável? Não deixe de saborear os escritos por Vinícius de Moraes, com retratos soberbos de Dorival Caymmi e Di Cavalcanti, entre outros. Quer um exemplo da irreverência beirando a genialidade? Leia tudo que escreveu Paulo Francis, que naquela época ainda se dizia trotskista – mas uma coloração que mudaria em pouco tempo, com sua ida para os Estados Unidos, de onde escreveria anos mais tarde o seu Diário da corte, sucesso nas páginas da Folha e do Estadão. Imperdível também, no presente volume, é a entrevista que Glauber Rocha fez com Gabriel García Márquez, prova de que era um craque não somente com uma câmera na mão e uma idéia na cabeça. Ivan Lessa, que se mudou para Londres, onde vive há 21 anos, criou personagens e frases antológicas enquanto colaborou com o Pasquim. A mais famosa delas, ‘A cada 15 anos os brasileiros esquecem o que aconteceu nos últimos 15 anos’, até hoje é repetida.

E as entrevistas? Recomenda-se a leitura de todas, sem exceção. São retratos 3 x 4 de personagens que marcaram uma época. Eis alguns deles: Leila Diniz, Paulo Mendes Campos, Madame Satã, Paulinho da Viola, Tom Jobim, Edu Lobo. Todos submetidos ao crivo sem-cerimônia do Pasquim, em bate-papos regados a uísque e doses maciças de inteligência. O Pasquim também inovou ao pôr o entrevistado na roda, coisa que se imita até hoje. Ah, e tem os cartoons, as famosas tiras da lavra de Ziraldo, Millôr, Jaguar (e o seu Sigmund), Henfil e Fortuna.

Segundo os organizadores, esse primeiro volume mobilizou 25 pessoas, ao longo de um ano de trabalho ‘delicado e inteiramente subjetivo’. Outros três volumes virão. Enquanto isso, é aproveitar e se esbaldar.

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Jornalista, editor do Balaio de Notícias