‘A mídia quis me vilipendiar, ao me mostrar como a dançarina da pizza ou a sacerdotisa da imoralidade. Vinte segundos apagaram mais de 30 anos de vida política. Posso ser gorda, não pinto os meus cabelos brancos, sou do PT. Se seguisse o padrão de beleza da propaganda, teria sido diferente. Caso eu fosse um homem, teria sido irrelevante.’ [Angela Guadagnin (PT-SP), O Estado de S.Paulo, 29/3/2006]
A mídia apenas mostrou o último (espera-se) ato feminino nas CPIs, e que vai deixar sua marca: uma deputada, integrante da comissão encarregada de zelar pelo decoro e pela ética parlamentar, dançando no plenário da Câmara Federal ao ouvir a decisão de que um colega não iria ser cassado. Fosse um homem dançando – ou mesmo uma deputada mais bonitinha – a mídia, justiça seja feita, daria o mesmo tratamento.
E, como se não bastasse a dança, vieram as explicações:
‘Que me perdoe quem encarou como deboche. Foi um ato humano, diante da situação de um amigo. Eu sou humana, agi espontaneamente com o coração. Em nenhum momento quis gozar ou tripudiar’. (O Estado de S.Paulo, 25/3/2006)
A deputada Angela Guadagnin é a mais acabada comprovação do ditado popular que afirma que o falar é de prata e o silêncio, de ouro. Cada vez que vai à tribuna ou à imprensa para se explicar com relação à dança no plenário da Câmara, mais complica a sua imagem. Tivesse ficado quieta, depois de dizer que agiu espontaneamente, voltaria a ser tratada como mais um parlamentar petista. E o episódio acabaria apenas enriquecendo o folclore do Congresso Nacional, em vez de merecer – como está acontecendo – análises sobre o comportamento emocional e descontrolado das mulheres.
A coisa complicou quando ela envolveu a mídia, acusando-a de ser injusta e preconceituosa. A mídia pode até merecer esses adjetivos. Mas não nesse caso. A deputada errou, ficou com medo de perder o cargo (mas, por razões técnicas, continua integrando a Comissão de Ética) e se defendeu acusando os outros.
Assuntos ignorados
Se a mídia quisesse – como diz a deputada – destruir uma carreira política de 30 anos, poderia ter mostrado não apenas que ela dançou, mas que, com essa atitude, foi contra o regulamento do Conselho de Ética, que define no seu artigo 5º a tão falada quebra de decoro parlamentar: ‘perturbar a ordem das sessões da Câmara ou das reuniões da comissão (artigo 5º, parágrafo 1) e ‘praticar atos que infrinjam as regras de boa conduta nas dependências da Casa’ (artigo 5º, parágrafo 2).
Talvez a queixa maior da deputada seja porque virou notícia no momento menos oportuno. A mídia não deu a menor importância – essa deve ser a maior queixa da deputada – quando ela propôs transformar o dia 31 de outubro no Dia do Saci, quando instituiu o Dia do Fisioterapeuta ou quando propôs a proibição do uso de animais em espetáculos circenses. A mídia também não tomou conhecimento de seu projeto proibindo a distribuição e recomendação, pelo SUS, de métodos anticoncepcionais emergenciais, como a pílula do dia seguinte.
De todos os seus projetos, esse referente à pílula do dia seguinte deveria ter merecido maior atenção da mídia, pois é assunto que interessa às mulheres, principalmente às mulheres pobres que dependem do SUS, e para quem a pílula do dia seguinte pode representar a diferença entre ter mais um filho indesejado, com todas as suas consequências tanto para a mãe como para a criança.
Assuntos femininos que são sistematicamente ignorados pela mídia. Mas nesse caso a deputada não reclamou, não se sentiu discriminada, nem lembrou que está fora dos padrões de beleza da publicidade.
Mero registro
Ignorada pela mídia durante o governo Fernando Henrique, quando se especializou em tentar levar adiante as investigações sobre o Sivam e qualquer outro assunto que o PT considerasse corrupção no PSDB, a deputada Angela teve como tarefa, durante as CPIs, tentar adiar o julgamento dos colegas. Apesar dos adiamentos, teve que aceitar a cassação (ou a renúncia) de alguns deles. Talvez por isso tenha comemorado de forma tão intensa – e pouco decorosa – sua vitória da semana passada.
Se, do ponto de vista parlamentar, o comportamento da deputada é indecoroso, sua atitude foi indecente com relação às mulheres. E disso a mídia não falou. Usar a sua condição de mulher como desculpa é até compreensível quando se trata de pessoas como a esposa de Marcos Valério, que, com suas lágrimas e aspecto frágil, conseguiu interromper o depoimento no qual sua defesa era ‘sou do lar’. Mas uma deputada do PT, que se orgulha dos 30 anos de vida política, não poderia usar como defesa o fato de não seguir o modelo de beleza da propaganda.
Depois de tentar se desculpar usando a emotividade como argumento, apelar para a condição de mulher – especialmente da mulher que não é jovem, não é magra e não é bonita – é ofender as mulheres bonitas e que prezam a ética. Ela feriu o decoro parlamentar, ofendeu os parlamentares e, como se não bastasse, tentou levar todas as mulheres junto com ela.
E a mídia, condescendente, limitou-se a registrar a dança em fotos e imagens. Não se defendeu nem reagiu como poderia, expondo detalhes da atividade política dessa senhora que mostra, em sua longa carreira, ter conseguido vencer os obstáculos impostos por sua condição feminina.
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Jornalista