Alberto Dines – Hoje temos como convidados três autoridades: um ministro de Estado, um professor emérito da USP e grande geógrafo e um grande e veterano jornalista. Já que o nosso propósito é levar adiante esse debate, que a imprensa desmereceu um pouquinho, vou pedir a cada um que faça um debate livre. O ministro está aqui para responder, então eu espero que seja informal, mas profundo. E vamos começar com Ciro Gomes. Ministro Ciro Gomes, eu vi o senhor aqui um pouquinho intranqüilo na nossa reportagem com Dom Luiz Cappio, fazendo aquela preleção.
Ministro Ciro Gomes – Sou um pouco conhecido como provocador e não fugir dessa coisa, com muito respeito. Mas eu estou convencido, dado que Dom Luiz é um homem de bem, de boa fé, e eu não posso duvidar das suas boas intenções, eu estou convencido, cada vez que o ouço ou que leio alguma coisa que ele fala ou escreve, de que ele está elaborando sobre uma versão falsa do projeto de integração de bacias. Hoje, nessa declaração, eu vejo de novo porque o projeto é uma outorga da Agência Nacional de Águas de 26 metros cúbicos por segundo exclusivamente vinculados ao abastecimento humano e à dessedentação animal, só e somente só, o que acontece em 40% do tempo. Se Sobradinho encher e sangrar é que passa uma cheia de 15 mil metros cúbicos. Aí tem-se a possibilidade de pegar mais 30 metros cúbicos para guardar nas barragens, para tentar atravessar anos seguidos de seca, que são cíclicos no nordeste.
Mas o projeto só vai operar incondicionalmente com 26 metros cúbicos por segundo, que é 1,4% da vazão mínima do rio na foz para abastecimento humano. Não tem nenhum outro destino, e tem essa obsessão de que isso é para um grande negócio etc., embora seja de se relativizar também que não é possível satanizar o negócio de irrigação. Não é que o projeto seja de irrigação, não é, é para abastecimento da população das cidades pequenas, médias e grandes.
Alberto Dines – Professor Ab’Saber, alguma pergunta ao ministro Ciro Gomes?
Professor Aziz Ab’Saber – Eu tenho um grande prazer de estar na TV Cultura num programa do Dines. O assunto é muito complexo, por isso eu vou dizer um pouco das minhas intenções e do meu ideário. Nos últimos tempo eu me fixei em tratar de assuntos da Amazônia e assuntos do Nordeste Seco. Em função dessas escolhas eu me vi na obrigação de estudar melhor as questões relacionadas com a transposição de águas do São Francisco para os sertões norte do grande domínio do Nordeste seco. Participo de um grupo que pensa no nacional, no regional e no setorial e, por isso mesmo, eu penso que quem não pensar em tudo isso não é um bom brasileiro.
Então, o regional no Brasil é muito grande, é um país de extensões fantásticas e é preciso conhecer melhor todos os espaços das diferentes regiões. Para a Amazônia eu já fiz um zoneamento especial que precisa ser aprofundado, melhorado, e que poderia servir para um governo que quisesse pensar no todo, e não na parte. Isso significa que, em cada uma das regiões da Amazônia, deveria acontecer um estudo com equipes de pessoas – pós-graduandos, técnicos, agrônomos, geólogos etc. – e a mesma coisa eu sugiro para o Nordeste. Estou muito mais interessado no zoneamento ecológico, econômico, fisiográfico e nos problemas que a população enfrenta em todas as células espaciais dos sertões.
Para isso, eu parti do princípio de que existia um mapa prévio, que está no Atlas do Império do Brasil de 1868. Por lá nós podemos identificar o nome de todas as células espaciais. O outro problema que me convenceu a pensar na questão da transposição das águas é a questão da metodologia de planejamento. Eu não posso apenas ficar dizendo que a parte hidrológica, retirando-se tanto de água, não vai prejudicar nem o São Francisco nem a produção das hidroelétricas de Paulo Afonso, Itaparica e Xingó. Nesse sentido, adoto uma metodologia: em primeiro lugar é preciso ter uma comissão de recursos. Como dizia o grande paisagista e arquiteto Garret Eckbo, o maior arquiteto paisagista do século passado nos Estados Unidos. A segunda comissão é uma comissão de cartografação, o mapa geomorfológico bem feito. Numa bacia de centenas de quilômetros de extensão, como é o caso do Jaguaribe, por exemplo, não é fácil fazer um mapa geomorfológico, demora. Mas eu preciso saber quais os setores que podem ter a possibilidade de uma irrigação em colinas que se inclinem um pouco na direção do Jaguaribe, eu preciso saber o mapa de solo.
Então é o mapa geomorfológico, o mapa de solo, o mapa fitogeográfico. Ao mesmo tempo eu tenho que ter plantas das cidades que vão poder receber alguma parcela dessa água que de modo tão custoso para o país vai chegar lá. A outra comissão é uma comissão de visualização, que tem que ser uma comissão de trabalho de campo, de estar perto dos vazenteiros e compreender a questão dos leirões e a importância dos leirões para as feiras do sertão. E nesse sentido, há uma geografia humana e as ciências sociais e até psicossociais de interesse para o planejamento. E é nesse nível que arma-se certa crítica ao projeto sem nenhum problema de crítica pessoal, é crítica metodológica.
Ministro Ciro Gomes – Eu acho que as ponderações do professor Ab’Saber só merecem respeito porque há nesse projeto um inimigo central em todos os ângulos, que é a desinformação. Talvez a responsabilidade, não posso dizer culpa, porque nossa vontade não é essa, nós corremos já esses dois anos e meio todas as instituições organizadas da sociedade civil brasileira, pedindo oportunidade para esclarecer, para ouvir, para incorporar críticas, recontamos os corpos editoriais de todas as grandes corporações de jornalismo do país e, infelizmente – ainda que haja um aproveitamento –, ele é muito complexo e o professor Ab’Saber está colocando os ângulos todos.
Essas comissões que ele advoga podem não ter a notoriedade suficiente para que ele perceba e dê qualidade ou reconhecimento com a autoridade que ele tem, que é sem igual no país, mas eu gosto muito de ouvi-lo, acompanho o que ele escreve porque sei que aí está a crítica de uma pessoa qualificada, bem-intencionada e que quer fazer as coisas direito, o que nem sempre é o caso.
Essas comissões todas, esses levantamentos todos estão feitos, talvez não com a qualidade, não com a notoriedade necessária, mas nós procuramos recrutar o que houvesse de excelência no pensamento. Por exemplo, os estudos de ictiofauna estão detalhados. Recentemente, nós recebemos uma crítica porque havia uma lacuna sob o ponto de vista de limnologia, que eu não sabia nem o que era. Vem a ser, pelo que eu entendi depois, essa vegetação que fica nas águas de superfície. Isso foi incorporado, foi adaptado. Toda a caracterização edafopedológica, que vem a ser a questão dos solos etc., a ponderação das populações de consumo, de perdas, de desperdício. Tudo isso está levantado e à disposição do aperfeiçoamento pela crítica de um homem da qualidade do professor Ab’Saber.
Marco Antonio Coelho – A respeito da fala inicial do ministro Ciro Gomes, eu queria inicialmente manifestar o meu protesto devido à forma pela qual o ministro se referiu ao ilustre bispo da cidade de Barra, Dom Luiz Flávio Cappio, quando ele diz que – e tem repetido isso inclusive nos jornais – certamente o bispo está iludido, que ele não conhece o projeto ou não está bem-informado. Eu acho que isso é uma desqualificação absurda da posição do bispo. Em primeiro lugar, ele é um economista e em segundo lugar ele vive o problema do São Francisco há mais de 30 anos. Então é muito simples o ministro Ciro Gomes dizer que ele não conhece o projeto. O ministro Ciro Gomes não tem resposta para as questões apresentadas por Dom Cappio.
Nessa segunda fala do ministro Ciro Gomes ele disse que não sabia e não tinha conhecimento a respeito da limnologia e deu inclusive uma definição um pouco equivocada sobre essa parte da biologia, da ciência. É curioso, isso, pelo seguinte: em junho deste ano, na cidade de Ilhéus, houve o Congresso Nacional da Sociedade Brasileira de Limnologia, exatamente essa sociedade que estuda os rios no seu relacionamento com toda a ecologia. Qual foi a decisão tomada por unanimidade por 1.000 cientistas brasileiros? Isso há dois ou três meses, não se trata de uma apreciação do passado. Eles disseram duas coisas fundamentais. Primeiro, que o projeto de transposição não está voltado para atender às populações mais carentes e que mais necessitam de água, como aqueles que vivem na Bacia do Seridó, no Rio Grande do Norte. Em segundo lugar, eles propuseram que o projeto seja imediatamente reformulado, mas que, para isso, seja nomeada uma comissão da qual não podem participar representantes ou funcionários do Ministério da Integração Nacional. Isso representa um pronunciamento claro da comunidade científica brasileira contra a forma de atuação do Ministério de Integração Nacional.
Alberto Dines – Ministro, sua vez.
Ministro Ciro Gomes – Só pra mantermos a serenidade e o equilíbrio, ainda que apaixonadamente, porque o tema merece paixão, quando eu afirmo que não duvido da boa fé, quando eu afirmo que sei da seriedade do bispo dom Luiz Cappio eu nada mais estou dizendo senão que eu o respeito. Portanto, eu não pretendi, em nenhum momento, desqualificá-lo. Se eu acredito que ele é sério, como eu acredito, se eu acredito na sua boa fé, como eu acredito –, ao ouvi-lo novamente, como ouvi hoje, falar que 70%, na ocasião, e agora, boa parte do projeto (já mudou os 70%), é para atender ao grande interesse, o hidronegócio, como ele é de boa fé e honesto –, ele só pode estar refletindo sobre uma versão falsa do projeto.
Isto eu quero dizer aqui categoricamente, porque o projeto está confinado a 26 metros cúbicos por segundo, 1,4% da vazão mínima do rio, 100% de garantia, para abastecimento humano. Isso é um documento da Agência Nacional de Águas, publicado no Diário Oficial, tem força de lei e a gestão do projeto me obriga a me dedicar a isso. Claro que, por estar dedicado a isso, me esforço para curar a minha ignorância, não posso dar conta de conhecer tudo. O professor Ab’Saber vai suprir um pouco essas minhas lacunas. Mas eu, por exemplo, muito recentemente, talvez uns seis meses, é que vim a saber que existe esse ramo especializado da ciência, da ecologia, que é a limnologia, e que me parece que não é bem a ciência que estuda a ecologia dos rios, mas essa que estuda o problema de vegetação de superfície de água [do grego limne (lago) e logos (estudo), é a ciência que estuda a estrutura e o funcionamento dos ecossistemas aquáticos continentais, segundo definição da professora-doutora Catarina da Silva Pedrozo, da UFRGS]. A não ser que a minha ignorância não tenha sido curada de todo neste ponto.
Alberto Dines – Professor Ab’Saber, o senhor tem alguma questão a acrescentar?
Professor Aziz Ab’Saber – O segundo tratamento que eu gostaria de fazer diz respeito aos rios do |Nordeste seco e aos rios que cruzam o Nordeste seco baiano na região do cotovelo do São Francisco. Esse problema é muito sério porque existe uma nomenclatura que tem conseqüências. Os rios da região do grande norte – Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba –são intermitentes, sazonários, portanto semestrais, aproximadamente, e exorreicos. Quer dizer, que chegam ao mar. Agora, a falta de conhecimento integrado levou a alguns atos falhos, por exemplo, dizer que ‘já que o rio vai pro mar, vamos jogar para o além-Araripe’. Mas acontece que o fato básico do Nordeste seco é a existência de rios que chegam ao mar.
Por isso, durante centenas de anos, eles perderam a salinização. Na hora em que começou com uma solução importante, que é a dos açudes, as águas passaram a concentrar um pouco de sais. E obviamente não houve o exorreísmo, mas sim o endorreísmo. E nesse sentido, o problema é sério, porque colocar as águas que têm um nível de poluição grande do extenso São Francisco além-Araripe, dentro dos açudes, sobretudo Araras, é colocar águas doces poluídas em cima de águas semi-salinizadas. É essa água que vai descer por gravidade além-Araripe e, por canais, para o Piranhas-Açu. Como eu conheço essas duas regiões com muito cuidado, desde o ano de 1952, e o Jaguaribe em particular no ano de 71, eu fico pensando a quem vão servir essas águas.
Evidentemente, para o consumo direto é impossível. Teria que ter tratamento direto em todos os municípios que não têm bons recursos. Por outro lado, essa água vai atrapalhar a vida dos vazenteiros que fazem os leirões [elevações contínuas de terra, que podem ser construídas com enxada ou arado ou taipadeira] de fundo de rio. Mas algumas pessoas chegam para mim e dizem: ‘Os leirões já eram’. Não, eu penso em todos os componentes da sociedade nordestina tão sofrida. E, nesse sentido, é preciso pensar em todos, e não apenas nos latifundiários que vão ter as suas terras valorizadas, vão ter um acesso da água inicialmente um pouco problemático por causa da poluição e mais tarde eles vão ter um espaço que possa ser dividido, ser vendido, o loteamento do espaço no Brasil é uma das formas do capitalismo. Todo mundo quer transformar o espaço em mercadoria, então é preciso conhecer mais as conseqüências do projeto.
Alberto Dines – Eu gostaria que o ministro respondesse.
Ministro Ciro Gomes – Volto a dizer que o maior inimigo do projeto é a desinformação. Há quase dois anos, assim que eu recebi da FUNCAT, que é uma fundação do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, a quem eu cometi a tarefa de fazer o projeto, recebi empacotado, por ordem nossa de interdição – tiramos a geodésica da linha dos canais, levei ao presidente Lula, e ele imediatamente concordou em decreto, declarando de utilidade pública para desapropriação e reforma agrária de 100% de dois quilômetros e meio de cada lado da obra. Então o benefício importa em 350 mil hectares, que vêm a ser mais de duas metas anuais de reforma agrária do país inteiro concentradas nos 720 quilômetros de canal. Isso já está declarado de utilidade publica, está congelada a estrutura fundiária, está proibida a negociação.
E nos rios secos está-se fazendo há dois anos a titulação das terras dos pequenos proprietários até 100 hectares, passando a eles a informação de que próximo deverá chegar a água. A outra questão da salinização: ela não é neste momento uma preocupação porque a revitalização do rio é um compromisso, que é a outra face da moeda da integração. Estão no plano plurianual, já consignados, 4 bilhões, temos acertada, já com deliberação favorável do Senado e já passando para comissão específica na Câmara, emenda da Constituição vinculando por 20 anos recursos suficientes para financiar 100% do plano de revitalização, que não existia, agora existe e já está saindo do plano para ser um projeto com orçamento, meta física, já algumas etapas em execução.
Por exemplo, o Rio das Velhas, objeto da reflexão do deputado Marco Antonio [O Rio das Velhas, memória e desafio, de Marco Antônio Tavares Coelho, Paz e Terra, São Paulo, 2002], está neste instante em obras de revitalização financiadas pelo governo federal. O Projeto Manuelzão, que tem placa do governo do estado de Minas, é financiado pela União dentro do programa de revitalização. Pirapora, que ele certamente conhece bem, está contratada a obra e o saneamento básico. Ali mais abaixo, Bom Jesus da Lapa, está contratado. Juazeiro da Bahia. Petrolina, Cabrobó e Salgueiro, em Pernambuco, Penedo. Os primeiros canteiros de muda já funcionam há quase dois anos em conjunto com o Instituto Florestal de Minas e financiamento da União Federal dentro do programa de revitalização para reposição de matas ciliares. E essa reposição será feita também com esforço de educação ambiental, cuja precedência nós demos aos assentamentos de Reforma Agrária fazendo entendimentos com o MST para que ele ganhe o dinheiro – em vez de se pagar a empresas, que ele ganhe o dinheiro para a formação dessas mudas e a sua plantação, e ao mesmo tempo as crianças possam incorporar.
Há um barco, que nós construímos em convênio com o governo da Bahia, indo e vindo para demarcar o novo talvegue do Rio. Quanto aos bancos de areia do assoreamento, e ponderando essa quantidade de areia, determinar já as primeiras intervenções para desassoreamento, cubar o primeiro banco de areia a ser desassoreado já está também apalavrado na frente de Penedo. Enfim, nós estamos, de boa fé, ouvindo todas essas ponderações, para tentar construir uma resposta que seja um projeto para beneficiar diretamente 12 milhões de pessoas dramaticamente necessitadas disso. Eu governei o Ceará. A capital do Ceará é a quinta cidade brasileira e na minha mão acabou a água. Por isso que eu não consigo ser esse olímpico observador da cena nacional. Eu sou apaixonado pelo assunto porque eu não sou hidrólogo, eu não sou limnólogo, eu não sou geógrafo, eu conheço a realidade observando.
Marco Antonio Coelho – À medida em que o ministro vai expondo seu ponto de vista, ele vai deixando claramente visíveis as contradições em que ele e o governo estão metidos. Por exemplo, inicialmente, o ministro declarou que houve uma discussão exaustiva do projeto de transposição. Agora, mais recentemente, ele diz: o que é terrível é a desinformação. Então temos duas opiniões dadas pela mesma pessoa nesse mesmo programa. Houve um grande debate, mas, no entanto, há desinformação. Na verdade, o bom senso indica: só depois desse movimento assumido pelo bispo de Barra que a população brasileira começou a discutir. Eu, por exemplo, venho há três anos pesquisando sobre o São Francisco [para o livro recém-lançado Os descaminhos do São Francisco, Paz e Terra] e eu sentia que durante esses anos, até agora, poucas pessoas se interessavam pelo São Francisco.
Ministro, agora é que começou o debate sobre o São Francisco e o senhor está querendo encerrar o debate. Eu chamo atenção nesse programa de grande importância é que essa questão envolve a unidade nacional. No fundo, o que está se vendo é que as regiões brasileiras estão em conflito. Os estados estão em conflito. Alguns governadores apóiam e outros, não. Se o governo persistir nessa proposta, no que eu acredito, ele vai sentir que o país está se desunindo e o Ministério da Integração Nacional está se transformando no ‘Ministério da Discórdia Nacional’.
Ministro Ciro Gomes – Há determinadas coisas no projeto do Rio São Francisco que precisam de mais atenção, e sou mero executor de uma política determinada pelo meu chefe, que é o presidente da República. Ao debate posso dar a minha contribuição clara, mas eu quero dizer que, ao longo dos últimos dois anos e 10 meses, mobilizamos 29 audiências públicas, constituímos e demos posse ao Comitê de Bacia, fizemos o Plano de Bacia para dar números periciados à constituição do rio, diagnosticar seu problema e qualificar o Plano de Revitalização, que era um consenso oco, não existia projeto, existia orçamento. Nós colocamos essa questão do PPA e daí saímos. Pedi à OAB e me deram a oportunidade de cinco horas de debate. Pedi ao MST, numa reunião criada pelos seus delegados do país inteiro nesse debate que aconteceu. Na Contag foi feito um debate, fui à SBPC apresentar as nossas considerações e ouvir as ponderações. Fui à Federação das Indústrias de Minas Gerais, fui à Federação do Estado de São Paulo, estive no Clube de Engenharia e na Federação das Indústrias do Rio de Janeiro e eu fui à CNBB em setembro do ano passado.
Lamento que Dom Cappio não estivesse lá presente, como também não me deu, até hoje, a oportunidade de conversar diretamente com ele. O que pega é catapora, opinião não pega. Ele tenha a generosidade de me receber, do jeito como eu pedi para ser recebido. Várias vezes ele disse de forma pouco cristã – essa é uma opinião minha – que ele quer falar com o presidente, não quer falar com o ministro. Tudo bem, ele vai falar com o presidente e não com o ministro, mas eu peço a ele a oportunidade. Portanto, estou convencido de que Dom Cappio está induzido em erro e eu imagino até por quem.
Alberto Dines – Vamos fazer uma espécie de síntese. Cada um dos convidados tentará fechar um pouco a sua argumentação. O assunto é vasto, merece não um programa, mas um congresso. Ministro.
Ministro Ciro Gomes – Resumindo, o Nordeste Setentrional, como o professor Ab’ Saber descreveu, não tem nenhum rio perene. Todos os rios são secos: correm quando chove, três meses, no máximo quatro por ano, e passam oito a nove meses secos. Isso quer dizer, cientificamente, que a disponibilidade segura de água que há no potencial dos açudes resume-se a 450 metros cúbicos por habitante/ano. Estou trazendo os números para demonstrar, porque isso é um padrão internacional, que as Nações Unidas dizem que a vida é sustentável quando há, pelo menos, 1.500 metros cúbicos por habitante/ano. No Nordeste Setentrional, a disponibilidade é de menos de um terço disso.
Quem no Brasil não tem uma pedra no lugar do coração vai entender que não é possível que, nessa altura do século 21, não se tenha a clareza de que no Nordeste brasileiro falta água. Tem outros problemas: coronelismo, latifúndio, o diabo. Mas a ancestralidade do problema é a indisponibilidade de água. O Rio São Francisco tem 70% de toda a água que existe no Nordeste. O remanescente está quase todo no Rio Parnaíba, lá na separação do Piauí com o Maranhão. Mas mesmo desses 70%, nós precisávamos saber, periciadamente, se o rio tinha condições de sustentar a resposta necessária para essa atividade, senão teríamos que buscar outra solução. E nós periciamos o rio no Plano de Bacias, que não tem só uma excelência técnica sem precedentes na história de Plano de Bacias do Brasil, como tem uma validação social de 18 audiências públicas – governo de fora –, validade hidrodinâmica do Comitê de Bacia que, volto a lembrar, foi constituído e empossado por nós para estabelecer uma interlocução, ainda que antagônica, uma interlocução honesta e respeitável com o protagonismo institucionalizado do Rio São Francisco.
Este plano de bacia, portanto, não tem contestação. Ele diz que o rio tem 2.850 m3/s de vazão média, 1.850m3/s de vazão mínima com 100% de garantia, 360 m3/s disponíveis para o novos consumos, 91 metros cúbicos é tudo o que consome. Extrapola todas as demandas da bacia num universo de 2025. Em 2025 estariam sobrando 98. Nós então refizemos a outorga e pedimos 1,4% da vazão mínima. Só para ter uma idéia caricata, os aparelhos mais modernos que periciam vazão de rio precisam alteração de 5%. Nós vamos trabalhar com menos da metade da margem de erro. E, por fim, a revitalização é uma agenda que só agora, com a decisão do presidente Lula, entrou no centro da agenda do país com plano, projeto, orçamento e execução. Já temos 40 municípios onde estão contratadas as obras.
Professor Aziz Ab’Saber – Existem tantos ângulos ainda a ser tratados que eu gostaria de dizer algumas coisas que precisam ser prioritárias. Em primeiro lugar, as primeiras críticas ao projeto foram ocasionadas por algum exagero. ‘A transposição vai servir a todo o Semi-Árido brasileiro’. O semi-árido brasileiro é o que está além-Araripe e aquém-Araripe, mais ou menos. E ainda tem o braço leste depois da região da Chapada Diamantina até a região de Lençóis. Então esses exageros ocasionaram muitos problemas. E a integração, por exemplo, não é bem o caso de transposição. A revitalização não é apenas colocar um pouco de vegetação na beira dos rios onde, desde séculos, existem os barranqueiros. Então nós vamos tratar mal os homens dos leirões e os homens dos barrancos. É preciso entender um pouco Dom Cappio, ele tem toda a razão em dizer que nós precisamos saber que as águas vão sair de uma região também muito pobre. Não basta ter o São Francisco para que haja riqueza da população ribeirinha. E essa população ribeirinha vai até 250 a 500 metros. E ele não disse que entre as imagens de satélite que eu organizei, uma delas mostra o pálio deserto de xique-xique. As pessoas não vão poder entrar na margem esquerda porque há um pálio deserto no lado esquerdo. Então as reclamações que se fazem é para completar o projeto em termos de conhecimento científico integrado, e não apenas em torno de alguma instituição que foi consultada.
Alberto Dines – Jornalista Marco Antonio Coelho.
Marco Antonio Coelho – Para que o ministro não pense que eu estou concentrando nele, eu agora me dirijo ao presidente da República. Na verdade, esse projeto foi montado e estruturado e vem sendo impulsionado tendo em vista um programa eleitoral. Esse é que o problema. Daí a urgência do ministro Ciro Gomes em começar logo isso. O que está na frente é o programa da eleição presidencial. Eu lanço esse apelo ao próprio presidente da República. Ele tem que rever isso. Obras que representam grandes modificações da natureza não podem ser tocadas tendo em vista um mandato de quatro anos. Portanto, num momento em que há um fracionamento da sociedade brasileira, das instituições, e quando o projeto não foi bem-estudado, como é evidente, cabe ao presidente da República seguir uma sugestão dada pelo Congresso Brasileiro de Ecologia pedindo para nomear uma comissão de alto nível com cientistas que não sejam funcionários ou ligados ao Ministério da Integração Nacional.
Ministro Ciro Gomes – O Brasil não pode aceitar esse pseudodemocratismo como se quer agora. Um governo de quatro anos que passa três discutindo uma obra que precisa de dois, pelo menos, para executar… Não é razoável que se acuse o governo. Eu, pelo contrário, que sou funcionário, num estilo meu essa discussão teria se encerrado já lá atrás. O que não quer dizer que está encerrada, está em aberta. A vosso pedido, vamos fazer um novo seminário de três dias, convocar todo mundo, chamar o Marco Antonio para ver se ele tem alguma coisa para acrescentar com sua vivência e seu testemunho. Nós estamos discutindo, se lá em cima as pessoas precisam de água e se água sobra sem fazer falta aqui embaixo parece uma solução, é só isso que estamos tentando fazer de boa fé. Não é possível que uma pessoa que nos critica ache que só ela tem boa fé e que os outros estão sob suspeita desse ou daquele subalterno. Isso é intolerável e eu não aceito. Isso é falta de educação.
Alberto Dines – Eu queria agradecer aos convidados e pedir desculpas aos telespectadores. Realmente o ideal seria que tivéssemos três, quatro horas sucessivas de debate. Deu apenas para aflorar alguns problemas. Tivemos que ser rigorosos em matéria de tempo porque o tempo é limitado, ele não é extensível. Mas eu prometo que vamos fazer todo o possível, na medida em que os convidados se dispuserem também, para continuarmos esse debate e motivar a imprensa para que leve esse debate sobre o rio da integração nacional a todos os quadrantes do Brasil.