‘‘Se vocês não têm nada instrutivo para falar sobre sexo, não publiquem nada. Jornal é uma fonte de cultura, por isso, nele pode se escrever sobre tudo, mas sem baixar o nível’. Essas palavras são de uma leitora, que se identificou como ‘mãe de duas adolescentes’. Ela criticava o texto ‘Se toque, garota!’, publicado na coluna ‘Sem Vergonha’ (caderno Buchicho), especialmente o seguinte trecho: ‘Abra os portais, mire o botãozinho da alegria – que você já conhece, eu sei – mas passe adiante. Para saber o que é sua vagina, introduza dois dedos. Depois, abra-os como se estivesse fazendo a expressão paz e amor’. Abra um pouco, um pouquinho mais, experimente a musculatura, a força que ela tem. Vagina é músculo, e como todo músculo tem de ser exercitado, não é verdade?’ A leitora ainda disse: ‘O pior é que a página nem é assinada, por isso não sei quem escreve, mas a pessoa não parece preparada para falar sobre tais assuntos’.
Sem vergonha
Jovem na década de 70 do século passado, quando era proibido proibir, confesso ter ficado meio sem ação ao ouvir a leitora, por telefone. Disse que iria analisar o assunto e, ao mesmo tempo, encaminharia suas observações à Redação do jornal. Uma coisa percebi de pronto: não poderia simplesmente classificá-la como ‘conservadora’. Ela não se queixou, por exemplo, da coluna ‘Sexo Verbal’ (publicada no mesmo caderno às quintas-feiras), assinada pelo médico Jairo Bouer, que utiliza outro tipo de linguagem para tratar de temas ligados à sexualidade.
Lendo todas as edições da coluna ‘Sem Vergonha’ desde o seu lançamento, no dia 1º/10 (sai semanalmente, aos sábados), fui me convencendo das ponderações da leitora quanto à impropriedade dos textos. Tentando se mostrar intimista, a linguagem vai do falso e ridículo – o vocativo ‘querida!’ (com exclamação) para mostrar uma suposta proximidade com uma hipotética leitora é o mais comum – ao grosseiro, como na primeira edição, falando das ‘deliciosas poses ginecológicas’ de uma determinada revista, e citando outra, com ‘artigos médicos e sociais sobre sexo, mas que no fundo (sem trocadinho) é bem sacaninha’. (Para ficar claro: neste parágrafo, os trechos entre aspas são citações literais da coluna ‘Sem Vergonha’.)
Para ampliar o debate, consultei especialistas no assunto, enviei-lhes todas as colunas publicadas, informando ser o caderno muito lido por adolescentes.
Paródia
Na quarta-feira falei com a terapeuta sexual Zenilce Vieira Bruno, diretora da Sociedade Brasileira de Estudos em Sexualidade Humana. Ela se preparava para uma palestra com pais e professores de adolescentes de um colégio de Fortaleza. No dia seguinte, ao voltar a falar com ela para pedir informações complementares ao texto que me enviara, ela falou da ‘coincidência’ acontecida no debate. Um dos pais, com aquiescência de outros, pediu que ela comentasse a linguagem ‘agressiva’ da coluna ‘Sem Vergonha’ do Buchicho. Também falaram de um trecho da coluna de 8/10, na qual se dava instrução de como ter uma ‘noitada’, ‘naqueles dias em que você estremece só no cruzar as pernas com seu jeans apertado’. Nessa edição escreveu-se o seguinte: ‘Se você ainda mora com a família, bem, pode experimentar bolinações variadas na mesa da sala de jantar, enquanto papai e mamãe se distraem na frente da tevê’. Os pais falaram da luta para conversar abertamente com os filhos sobre sexualidade, queixando-se do jornal, que, na visão deles, incentivava os jovens a agirem de forma escondida. Segundo Zenilce, o grupo com o qual ela discutiu, cerca de 200 pessoas, disse que os principais meios de comunicação pelos quais se informam, logo, os de maior influência, são a Rede Globo, a revista Veja e O Povo. Portanto, sob muitos aspectos, não é pequena a responsabilidade do jornal.
A terapeuta estuda o papel dos meios de comunicação na educação sexual, reconhecendo a importante atuação que eles podem desempenhar em relação ao assunto. Mas, para ela, os veículos estão mais preocupados com o ‘ibope’ do que com os resultados educativos. ‘No aspecto geral, se vê uma lamentável paródia, em que as matérias sobre sexo são exploradas de maneira sensacionalista’, diz Zenilce.
Esclarecimento
Dizendo-se ‘basicamente contra a censura’, a médica, psicoterapeuta e sexóloga Elza Dias, diz preferir confiar no ‘bom senso e em bases éticas para o discernimento entre o adequado e o inadequado’. Mas, para ela, a abordagem da coluna ‘Sem Vergonha’ ‘em nada vai ajudar na educação dos jovens; ao contrário pode confundir ou chocar, sem incentivar a reflexão’. Ela diz ainda que o material publicado pode ser ‘divertido para o público adulto’, mas o vê ‘como inadequado em um jornal diário, que tem leitores em todas as faixas etárias, especialmente num caderno que é muito lido pelos adolescentes’.
A médica ginecologista Zenilda Bruno, coordenadora do Serviço de Adolescência da Maternidade Escola Assis Chateaubriand, considera interessante o título ‘Sem Vergonha’, que poderia funcionar ‘como indutor de perguntas’. A médica diz que em palestras nas escolas, os questionamentos são geralmente feitos por meio de bilhetes: ‘Os adolescentes têm vergonha de falar’. Assim, para ela, ‘Sem Vergonha’ poderia ser usada para ‘conversar de forma natural sobre sexualidade’. No entanto, diz a médica ‘o foco está deturpado, gerando interpretações duvidosas e pouco esclarecedoras’.
Debate
Pelo visto, ninguém condena o debate sobre sexo e sexualidade pelos meios de comunicação. O aviso parece ser o seguinte: cada veículo tem de encontrar a linguagem adequada ao seu público. E parece haver consenso entre as especialistas consultadas que o jornal erra a mão em ‘Sem Vergonha’. Alguém ainda poderia argumentar: os jovens podem ver coisas ‘piores’ na internet e na televisão. É verdade, mas estamos falando do O Povo. Enquanto escrevia esta coluna não me saía da cabeça o conselho de Teodoro Madureira, o marido certinho de Dona Flor: ‘Um lugar para cada coisa, cada coisa em seu lugar’ (no livro Dona Flor e seus dois maridos, de Jorge Amado). O assunto merece uma boa reflexão do jornal – e o próprio Buchicho poderia fazê-la.’