Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A Globo foi para o espaço

A subida ao espaço do cosmonauta Marcos Cesar Pontes, na quinta-feira (30/3), teve o impacto de uma final de Copa do Mundo. A pátria substituiu as chuteiras por um capacete. Afinal, não é todo o dia que tal façanha se realiza. É o primeiríssimo brasileiro a confirmar com os próprios olhos o que Yuri Gagarin viu nos anos 1960 e condensou poeticamente: ‘A Terra é azul’. Aliás, os colegas russos de Pontes já o estariam comparando a Gagarin, por conta do… sorriso. Uma pauta e tanto, convenhamos. Verdadeiramente inebriante, levando-se em conta os remelexos desajeitados da deputada Angela Guadagnin, com sua dança da pizza, e o interminável rosário de intrigas palacianas que assola o país. Para combater o nosso ‘complexo de vira-lata’, sempre à espreita, nada como explorar à exaustão um exemplo edificante como esse.

Foi o que fez a Globo no Jornal Nacional, em matéria reprisada no dia seguinte na programação da Globonews, o seu braço a cabo. Na hora H do lançamento, concentrou o foco nas reações dos parentes do cosmonauta – com destaque para a emoção em close-up do pai –, alternando esses momentos com os sorrisos gagarianos de Pontes e flashes vibrantes do correspondente Marcos Uchôa direto da base russa do Cazaquistão. E a Soyuz TMA-8 venceu a barreira da gravidade e subiu aos céus com êxito. Aplausos crepitantes. Vivas e lágrimas. Quem se ateve somente à cobertura global, pôde ir para a cama sonhando com um final feliz e mergulhado num sono sideral. Nada muito distante de um capítulo do novelão das 8.

Todavia, quem se deu ao luxo de fuçar os jornais impressos, à cata de uma informação mínima sobre o Programa Nacional de Atividades Espaciais (Pnae) – um tema fora do cardápio diário do brasileiro –, deu de cara com algumas cositas capazes de trincar um pouco esse happy end.

O mar de rosas mostrado pela Globo sequer acenou com algumas incômodas realidades. Somos parte do Bric, o time de países considerados emergentes, formado por Brasil, Rússia, Índia e China. Contudo, aquém das conquistas já realizadas, por exemplo, pela Índia. Argumentou José Monserrat Filho, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Direito Espacial e editor do Jornal da Ciência, da SBPC, em artigo para a Folha de S.Paulo (26/3): ‘Índia e Brasil se iniciaram nas atividades espaciais no começo dos anos 1960. A Índia está hoje bem à frente, com um orçamento espacial beirando meio bilhão de dólares – mais de cinco vezes o nosso. Produz e lança os próprios foguetes e satélites. Coloca-os, inclusive, na órbita geoestacionária’.

A favor da viagem

A Índia conseguiu enviar ao espaço seu primeiro cosmonauta, Rakesh Sharmaem, em 1984. Com um detalhe importante: embarcou numa nave Soyuz como convidado, segundo José Monserrat Filho no mesmo artigo. O vôo do brasileiro custou ao erário R$ 21,6 – e advém daí boa parte da controvérsia em torno dessa viagem. Parte do corpo científico brasileiro acredita que todo esse dinheiro pago à Agência Espacial Russa poderia ter sido canalizado para outros objetivos mais urgentes.

Como a retomada das pesquisas na Base Aérea de Alcântara, que sequer recebeu uma mísera referência por parte da Globo, quando ali ocorreu a tragédia com o foguete VLS-1, em que morreram 21 técnicos. Nada como a filosofia rubensricuperiana: ‘O que é bom a gente mostra, o que ruim a gente esconde’. Por que provocar mal-estar na sala de estar? A retomada dos investimentos em Alcântara, segundo José Monserrat, no artigo citado, inserindo-a no mercado mundial de lançamentos comerciais, entre outros objetivos, é que conferiria sentido à viagem do cosmonauta brasileiro.

Na mesma edição de 26/3 da Folha, um artigo assinado pelo físico e professor da USP Luiz Gylvan Meira Filho se posiciona a favor da viagem do Marcos Pontes. ‘O Brasil não pode e não deve ficar à margem de qualquer desenvolvimento científico ou tecnológico que ocorra no mundo. Precisa ter um envolvimento, ainda que pequeno, em todas as aventuras do mundo moderno, para decidir quais devem ser desenvolvidas com maior profundidade’.

Mais combustível

Em entrevista ao Estado de S.Paulo (12/3), o presidente da Agência Espacial Brasileira (AEB), Sergio Gaudenzi, defende a missão e afirma que a idéia é ‘dar visibilidade ao programa’. Isso rebate críticas de que a viagem de Pontes seria mero ‘turismo espacial’. Ele assegura na entrevista que se trata de investimento estratégico para o futuro do programa espacial, e que não faltarão recursos para outros projetos. E afirma que o Brasil não abriu mão da base de Alcântara.

Em editorial, a Folha (31/3) critica: ‘A viagem do tenente-coronel Marcos Cesar Pontes ao espaço serve a dois propósitos. Permite que o governo diga que colocou um brasileiro no espaço – o que não é bom nem mau – e ajuda a encobrir o fiasco que foi e ainda é a participação do Brasil na Estação Espacial Internacional (ISS) – o que é péssimo’.

Segundo ainda o editorialista, ‘para não perder anos de treinamento de Pontes e ter a chance de dizer ‘pela primeira vez na história deste país mandamos um homem ao espaço’, o governo Lula teve que se entender com os russos. O Brasil está pagando cerca de US$ 10 milhões, quando o valor ‘de mercado’ de uma viagem a bordo da Soyuz é de US$ 20 milhões. Moscou concedeu esse desconto porque pretende transformar o Brasil em cliente de sua tecnologia espacial’.

Na mesma edição, o astrônomo Ronaldo Rogério de Freitas Mourão ajuda a pôr mais combustível no assunto: ‘Como um dos parceiros no projeto de construção da ISS (Estação Espacial Internacional), o Brasil assumiu o compromisso de construir algumas peças – ao custo de 120 milhões de dólares. Além de dar treinamento, a Nasa se encarregaria de enviar Marcos Cesar Pontes ao espaço; tudo sem custo adicional’. Porém, segundo Mourão, ‘o Brasil não tem honrado o compromisso de arcar com os custos das peças, enquanto outros países fazem suas contribuições para a montagem da estação. Em conseqüência, os astronautas dessas nações têm prioridade para voar, e Pontes acabava sendo preterido, ficando sempre para o fim da fila’.

Mais mistérios

Mas aí aconteceu o acidente da Columbia, em 2003, desativando a frota americana. Desde então, ‘o transporte para a ISS passou a ser feito com a espaçonave russa Soyuz. Esta, porém, tem tripulação de só três astronautas, enquanto a lançadeira comportava sete. A redução do número de assentos fez com que a fila de espera em que estava Pontes aumentasse’. Mourão lança uma pá de cal sobre a aventura do patrício: ‘O vôo de Marcos Pontes (444º astronauta ao espaço) é, na realidade, uma grande jogada eleitoreira do governo. Ela não irá contribuir em nada para reafirmar o programa espacial brasileiro’.

Na mesma edição, o editor de Ciência Cláudio Ângelo faz pilheria: ‘A viagem de Marcos Cesar Pontes é um grande salto para um bauruense, mas um passo minúsculo para a ciência no Brasil. Com ela provavelmente nasce e morre o programa espacial tripulado brasileiro, que começou como um delírio megalomaníaco na era FHC e acabou como uma piada no governo Lula’. E até mesmo a colunista Bárbara Gancia tratou com humor o assunto, levantando uma questão semântica: devemos chamar o representante brasileiro de ‘cosmonauta’ ou ‘astronauta’?

Como se vê, há mais mistérios entre o vôo da nave Soyuz e a realidade do programa espacial brasileiro do que pretendeu veicular a edição ufanista do JN da Globo.

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Jornalista, editor do Balaio de Notícias