Já estava mais do que na hora de alguém dar nome aos bois, separar o joio do trigo, dar a César o que é de César, apontar neste oceano virtual aqueles textos que saltam de computador a computador, impunemente atribuídos a autores que jamais os escreveram (e jamais os escreveriam).
Cora Rónai presta-nos este serviço. Exegese em tempos pós-modernos, ou hipermodernos, como preferem outros dizer. Identificação de anônimos (que paradoxo!). Revelação dos verdadeiros criadores. Opinião dos envolvidos.
Apócrifos na rede. As principais vítimas: Luis Fernando Verissimo, Mario Quintana, Jorge Luis Borges, Millôr Fernandes, Clarice Lispector, Arnaldo Jabor, João Ubaldo Ribeiro, Pablo Neruda, Gabriel García Márquez, Chico Buarque…
A incultura extra-rede é a causa desta proliferação impensada de artigos, crônicas e mensagens que pouco ou nada têm a ver com os autores acima. À incultura soma-se a leitura sentimental, este desejo de sentir um beijo no coração. Critério zero.
Como, por exemplo, em sã consciência, acreditar que Caetano Veloso conceberia pensamento tão inocente, tão ‘cristão’: ‘Envelheço, quando penso demasiadamente em mim mesmo e conseqüentemente me esqueço dos outros’?
Seria possível imaginar Verissimo escrevendo como Paulo Coelho – ‘Às vezes estamos sem rumo, mas alguém entra em nossa vida, e se torna nosso destino’? Ou compondo uma ‘Oração dos estressados’, cujo senso de humor grosseiro contradiz o estilo inconfundível?
Pérolas fajutas
Gabriel García Márquez, quando soube que seu nome referendava um texto medíocre que deu três vezes a volta ao mundo, lamentou: ‘O que mais me entristece é constatar que leitores meus admitiram como certo ter eu escrito algo tão ruim…’
Triste ler um poema de quinta categoria que centenas, que possivelmente milhares de internautas repassaram a tantos outros, como se fosse uma obra-prima de Clarice Lispector… e a escritora, até onde sei, jamais se dedicou à poesia, e se o fizesse evitaria o verso primário ‘Nada foi em vão’.
Reincidente a ingenuidade daqueles (e a nossa, talvez…) que, enviando aos amigos, colegas e desconhecidos o texto ‘Promessas matrimoniais’, de Martha Medeiros, achavam que pertencia a Mario Quintana, sem notar que a primeira linha já denunciava tudo: ‘Em maio de 98, escrevi um texto…’ Pela mais simples razão: Quintana faleceu em 1994.
Nem tudo o que cai na rede é peixe. Pode ser detrito. Pode ser cadáver. Pode ser pérola (falsa).
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Doutor em Educação pela USP e escritor; www.perisse.com.br