Wednesday, 27 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

>>Para confundir
>>Assunto delicado

Para confundir

O leitor que ficou sabendo da inclusão da tal Emenda 29 nas discussões sobre a prorrogação da CPMF deve estar esperando a próxima edição dos jornais para ver se entende.

Para se ter uma idéia aproximada da negociação entre o governo e a oposição, seria preciso ler os três principais jornais de hoje, que se completam mas não explicam, individualmente, do que se trata.

O Estado de S.Paulo foi quem chegou mais perto de esclarecer o assunto, mas para isso teve que abrir mão de relatar os detalhes legais da negociação.

A Folha escolheu ‘consolidar’, como se diz nas redações, apresentando toda a história num único texto, o que facilita a apresentação do tema, mas torna superficial a abordagem.

O Globo preferiu rechear sua reportagem com declarações dos políticos, e no final o leitor fica sem explicações suficientes.

É apenas negócio

Feita a leitura dos três jornais, a questão fica clara: com dificuldades na sua base parlamentar e descartada qualquer dissidência no partido Democratas, que fechou questão contra a CPMF, resta ao governo negociar com o PSDB.

Os tucanos, a rigor, não podem se opor frontalmente à prorrogação do tributo, pois seus governadores e prefeitos já deixaram claro que dependem dessa verba.

O PSDB precisa de uma justificativa para votar a favor do Executivo, depois de tantas declarações contra a proposta de prorrogação.

O governo suspendeu a regulamentação da Emenda 29, que vincula 10% do Orçamento da União, dos Estados e municípios à saúde e promete aumentar esses recursos com a CPMF.

É o motivo que o PSDB precisava para votar a favor.

A idéia do governo é completar a oferta com a proposta de criar um limite para despesas com pessoal.

Essa medida tiraria um dos principais argumentos que a oposição tem usado para atacar a prorrogação da CPMF.

O leitor quer entender

A complicada engenharia dos números dificulta o entendimento do que se passa no Congresso por estes dias.

O leitor estaria mais bem informado, a esta altura, se, desde o começo dos debates, a imprensa tivesse explicado aos leitores que, no fim das contas, tudo é mesmo uma questão de contas.



O governo quer os recursos da CPMF para manter sua política econômica, razão da popularidade do presidente Lula

A oposição quer o governo menos confortável, porque no ano que vem tem eleições municipais.

E o cidadão? Tudo que o cidadão quer é entender.

Assunto delicado

A imprensa tratou com cautela o caso que envolve o padre Júlio Lancelotti, personagem conhecido dos jornalistas de São Paulo por sua dedicação à defesa de menores carentes e de famílias sem teto.

Lancelotti chegou ao noticiário ao denunciar um esquema de extorsão a que vinha se submetendo há três anos.

Sob ameaça de um ex-interno da Febem que havia abrigado em sua entidade, a Casa Vida, o padre contou já haver pago cerca de 80 mil reais nesse período. Sem condições de continuar aceitando o achaque, procurou a polícia.

Os três principais jornais do País noticiam hoje o fato de que a polícia abriu inquérito contra o padre Júlio Lancelotti, que é acusado de haver abusado de um menino em 1999.

A denúncia, feita por uma ex-funcionária da ONG dirigida pelo padre, foi recebida em sigilo mas divulgada pela polícia.

Até aqui, os jornais têm se comportado com a discrição que o caso merece.

Afinal, não se conhece a credibilidade da acusadora, e o que complica a situaçnao do acusado é o fato de ter aceitado submeter-se a uma extorsão durante três anos.

Três versões diferentes

Cada um dos três jornais dá uma versão diferente do crime supostamente cometido pelo sacerdote.

O Globo afirma que a acusadora teria testemunhado acidentalmente Lancelotti violentando um rapaz de 15 ou 16 anos.

A Folha diz que a testemunha teria visto o padre em ‘atos libidinosos’ com o menino, mas afirmando não se tratar de ato sexual.

O Estado de S.Paulo noticia que ela teria visto o padre acariciar o adolescente.

O desencontro de informações não se justifica, já que todos entrevistaram o mesmo delegado de polícia.

A não ser, é claro, que o delegado tenha sido o autor deliberado da confusão.

A TV Record já havia apresentado uma suposta testemunha que dizia ter visto o padre beijando o rapaz.



A Record, como se sabe, é propriedade da Igreja Universal do Reino de Deus.
Esses são os ingredientes conhecidos de uma questão delicada.

Escola base

O noticiário sobre o caso é uma boa oportunidade para observar as escolhas da imprensa em histórias como essa.

Não há como não citar o caso da Escola Base, ocorrido em 1994, quando os donos de uma escola infantil foram injustamente acusados de abusar de crianças de quatro anos de idade.

Foi um dos maiores erros da imprensa brasileira, que ainda rende processos por danos morais contra praticamente todas as grandes empresas de comunicação do País.

Cisco na imprensa

Os jornais dão sinais de que começam a se interessar pelo caso que envolve a multinacional Cisco Systems com um esquema de fraudes e lavagem de dinheiro.

A Folha de S.Paulo, que segue na pista de uma suposta doação da empresa ao Partido dos Trabalhadores, insiste no tema, informando que o Ministério Público Federal vai investigar a suspeita.

O Globo entra na história com menos entusiasmo, mas cita o furo da Folha e parece ter destacado um repórter para acompanhar as investigações.

O Estado de S.Paulo dedica ao tema quase uma página inteira, tratando do vazamento de informações que quase fez naufragar o trabalho de dois anos da Polícia Federal e da Receita Federal.

O Estadão cita o telefonema entre dois acusados, gravado pela polícia, no qual aparece o comentário sobre a suposta doação da Cisco ao PT. Mas não dá o devido crédito à Folha de S.Paulo, que, afinal, levantou a questão em primeira mão.

A introdução de uma sigla partidária na história parece ser o estopim do renovado interesse da imprensa no caso.

Custa entender por que os jornais não demonstram tanta coragem na apuração dos crimes corporativos quanto dedicam aos escândalos na política.

A Folha na frente

Ao sair na frente e manter o interesse no caso, a Folha também ganha a vantagem de um melhor relacionamento com as fontes oficiais.

A edição de hoje já apresenta os frutos dessa maior dedicação: o jornal paulista é o único a informar que a Receita Federal vai estender as investigações a todo o setor de tecnologia da informação no Brasil.



Trata-se de uma declaração de independência da Folha, considerando-se que as multinacionais do setor se alinham entre os maiores anunciantes no País.

Além disso, a mudança de amplitude do noticiário, buscando abranger mais do que a empresa acusada inicialmente das fraudes, mostra que o jornal melhora a prática da investigação dos crimes corporativos.

Uma consulta aos arquivos sobre fraudes e outros crimes financeiros  revela que, assim como apreciam o chamado benchmarking, ou o processo de repetir sempre as melhores práticas do mercado, muitas empresas também reproduzem os maus costumes.