Na sexta-feira, 12 de março, toda a mídia impressa brasileira, sobretudo os cinco maiores jornais do país, saíram com a mesma foto na primeira página: a de Pablo Guerreio, do El País, distribuída pela agência Reuters, em que, dentre as vítimas e corpos do atentado em Madri, figura um naco de carne humana chamuscado pela explosão. Ou deveria figurar: afinal de contas, o Jornal do Brasil e o Diário de S. Paulo limaram o naco de suas primeiras páginas. O que, de pronto, gerou nas redações uma vasta digressão sobre se aqueles seriam o procedimentos corretos: damos a carne ou limamos a carne?
Sabe-se que no fatídico 11 de Setembro, de comum acordo, e a partir de ‘pedido’ do Departamento de Estado americano, as mídias dos EUA omitiram de suas fotos e imagens os cadáveres do atentado. O que foi prontamente peitado pelo mais bizarro sítio daquele país, o rotten dot com (www.rotten.com) , especializado em manchetar fotos de mau gosto (‘An archive of disturbing illustration’). Na época, a turma de Noam Chomsky, Michael Albert e demais colaboradores da Z Magazine (a bíblia da contracultura midiática), chegou a afirmar que a América se supunha ‘tão superior’ que era capaz até de omitir imagens de cadáveres que Hollywood dá de barato nos cinemas de todo o mundo.
Limar fotos, editorializar digitalmente imagens ou pré-editar fotos (decupagem) já uma tradicional tonalidade da paleta de cores da mídia. Volta e meia alguém se insurge contra algumas dessas práticas, mas por motivos que envolvam sempre a crítica da mídia concorrente.
Um ato de fé, bem raro, foi cometido pela revista Veja nos anos 1980. O presidente José Sarney blindara o repasse de verbas federais para Alagoas, justamente para atacar uma então estrela ascendente da probidade brazuca: Fernando Collor de Mello, o caçador de marajás – que aparecia defronte ao Palácio do Planalto, posando com uma mão em cada bolso, dos quais puxava os forros, na clássica atitude teatral de quem quer dizer que não tem um centavo. Após a capa, numa decisão rara, porque sábia: a então direção da Veja proíbe fotos com poses encomendadas pelos diretores de fotografia.
Crenças infundadas
Capas e capas, desde a Economist, passando pela IstoÉ, chegando à italiana Panorama, foram produzidas com inserções ou podas digitais nos últimos anos. Tanto que isso, nos EUA, ganhou um termo: photo ops, reducionismo que significa nada mais que ‘oportunidades fotográficas’. Que ficam obviamente ao sabor editorial da mídia. Acontece que, quando a técnica é adotada com responsabilidade editorial, costuma-se explicar os porquês de determinados retalhamentos ou inserções.
Em 1994, a revista Time pediu desculpas aos leitores por ter escurecido a foto policial (mugshot) do ator-futebolista O. J. Simpson. A Newsweek, concorrente, não fez o mesmo (deixou aos ombudsmans de jornais a tarefa), e mostrou como se fosse a coisa mais natural do mundo uma montagem em que as patinadoras Tonya Harding e Nancy Kerrigan, concorrentes mortais, dividiam o mesmo pedaço de gelo.
Em 2000, o New York Daily foi mais feliz: publicou na primeira página uma montagem em que Bill Clinton apertava a mão de Fidel Castro, nas Nações Unidas, e legendou: ‘Vejam a ilustração fotográfica do Daily News‘.
O estudioso de mídia da Universidade de Nova York Todd Gitlin, talvez ao lado de Bill Kovach o melhor crítico de mídia daquele país, inventou um termo para definir essa prática: ‘docudrama’. E sustenta que quem inventou essa história de misturar montagem com realidade, realidade com ficção etc, foi o diretor Oliver Stone a partir do seu filme JFK – em que reportagem, delírio e wishful thinking interagem de uma forma muito complicada, se não pré-coerente.
Há quem diga que o pai da fotomontagem foi John Heartfield, que em 1932, de um jeito bem canastrão, genial e irônico, expunha ao ridículo a propaganda nazista – sobretudo num cartaz em que Hitler posava fazendo o Sieg Heil e, atrás dele, um gordo capitalista se lhe depositava dinheiro na outra mão, ao que Hitler disparava no balãozinho (solilóquio): ‘Há milhões atrás de mim’.
Onde pode levar a adulteração/criação de imagens e cenas a partir do shot jornalístico?
Em 22 de setembro de 2000, pesquisa realizada pelo Roper Center, da Universidade de Connecticut (EUA), revelou que 58% de seus entrevistados acreditavam que os EUA tinham de fato um sistema de defesa antimísseis para proteger-se de ataques nucleares. De onde viera essa crença massiva? Das artes animadas que as emissoras de TV punham no ar sobre planos futuros da inteligência militar. A pesquisa foi repetida em março de 2001: desta vez 64% acreditavam que esse sistema de defesa realmente existia…
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Jornalista, autor de Falácia Genética, a ideologia do DNA na imprensa (Editora Escrituras, 2004)