É incompleta a cobertura do caso Suzane von Richthofen – a jovem que tramou a morte dos pais. Um Truman Capote deitaria e rolaria nessa história. O que teria levado uma jovem recém-saída da adolescência a planejar a morte dos próprios pais?
Até agora, ninguém sequer tangenciou as razões objetivas e, principalmente, as subjetivas, as questões emocionais, as relações familiares que estavam no pano de fundo do episódio.
Corrijo: na época do crime, a revista Época foi a que chegou mais perto. A partir de relatos de vizinhos e de parentes, começou a desenhar um retrato realista das relações familiares, atropelando o primarismo de reduzir um crime passional, uma tragédia dessa dimensão a mera má influência do namorado ou ao excesso de ambição de uma moça sem antecedentes criminais ou de violência.
A partir dos relatos de vizinhos e parentes, a mãe era apresentada como uma pessoa muito complicada, de relações difíceis com os filhos. Formação árabe tradicional da mãe de um lado, formação germânica tradicional do pai de outro, e, no meio, uma adolescente contemporânea, com todas as complicações que podem passar por uma cabeça adolescente de uma aluna PUC (Pontifícia Universidade Católica) – convivendo com colegas de vida e cabeça mais arejadas e tendo, em casa, uma educação repressora.
No meio do caminho, a reportagem estacou, possivelmente temendo enfrentar a possível ira dos seus leitores, julgando estar a revista acobertando uma criminosa. Mesmo assim, permanece como o relato mais realista, ainda que incompleto, do crime.
Não se trata de buscar pretextos para o crime de Suzane e seu namorado. É crime gravíssimo, pelo qual se tem que pagar. Trata-se de entender as razões objetivas, mas, principalmente, as emocionais e psicológicas que levaram ao crime.
Mas há um medo pânico de ir contra a opinião pública, um medo abissal de, sofisticando a análise, dar margem a incompreensões. Por isso, fica-se no lugar-comum, na simplificação primária da moça ambiciosa que pretendeu matar os pais para usufruir da herança com o namorado semi-marginal. Aí, sim, retratam-se bandidos de novela ou de histórias em quadrinhos, simples, fáceis de serem assimilados, não seres humanos em sua complexidade, não as relações familiares confusas, não os traumas, a pressão permanente pelo sucesso, os sonhos e pesadelos de uma sociedade que pressiona até a medula seus adolescentes, podendo levá-los.
As circunstâncias do crime permanecem nebulosas, à espera da grande reportagem. As entrevistas da Veja e do Fantástico deste final de semana mostraram uma jovem manipulada por seus advogados, um dos quais membro da Comissão de Ética da Ordem dos Advogados do Brasil, seccional São Paulo.
Em outra civilização, com outros valores, provavelmente os advogados seriam destituídos pelo juiz, devido à evidência óbvia de que o direito de defesa da moça foi desrespeitado por defensores inescrupulosos -mesmo sendo ela criminosa confessa.
Talvez só depois da condenação, quando o crime estiver esquecido, surja algum Truman Capote para desvendar os segredos de Suzane.
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A criminosa que não chorava
Luís Nassif / copyright Folha de S.Paulo, 12/4/2006
Os Estados Unidos são um modelo para o mundo, quer se goste ou não. Adotam-se no Brasil modelos de negócio importados de lá, hábitos de consumo, princípios jurídicos, grande parte da juventude dourada vai fazer por lá seus Ph.D.s. Além do lado consumerista ou meramente negocial, os EUA consolidaram modernos princípios de direitos individuais -aí reside a face mais legítima do modo de vida americano, a defesa dos direitos individuais.
Profundos defensores dos padrões americanos, nós, da grande mídia, não conseguimos assimilar seus valores, especialmente aqueles referentes aos direitos individuais -com exceção de um ou outro modismo, como a importação de conceitos raciais.
Fosse o advogado experiente, teria dado a orientação para o choro, mas longe das câmeras. E seria uma orientação legítima, porque peça central da acusação é a de que se tem uma criminosa fria, porque não chora. No noticiário policial, ser ‘fria’ passou a ser elemento vital no julgamento (e condenação) de qualquer suspeito. O sujeito comete um crime, é apanhado, sabe que está perdido, mas o delegado sempre se espanta com sua ‘frieza’. Esse estereótipo freqüenta o noticiário policial e sempre é eficiente para induzir a prejulgamentos.
Suzane ajudou a assassinar os pais. É criminosa, ré confessa. Mas de lá para cá sua vida virou um calvário. Acabou seu futuro, foi presa, dentro da cadeia enfrentou presidiárias tentando fazer justiça com as próprias mãos. Fora dela, uma opinião pública atrás de vingança. Pela reportagem da ‘Veja’, fica-se sabendo que ela mora escondido em um apartamento, com medo de ser identificada ou de ser reconhecida na rua. E ela é ‘fria’ porque não consegue chorar. Fantástico!
Por que o advogado orientou-a a chorar à frente das câmeras? Porque a parte mais evidente da campanha por sua condenação é acusá-la de ser ‘fria’, de não ter remorsos. Trata-se, portanto, de uma estratégia de defesa que seria aceita em qualquer tribunal. No direito americano, e no nosso, a relação cliente-advogado é sagrada. É como o confessionário. A televisão não tinha o direito de penetrar na intimidade reservada ao advogado na relação com o cliente. Nem o advogado de ser tão amador assim.
Aliás, a leitora Eliana Furtado, que não diz a profissão, mas provavelmente é psicóloga, escreveu brilhantemente sobre as lágrimas: ‘Sobre lágrimas, tenho algo a dizer-lhe: toda mulher mentirosa, manipuladora, sem escrúpulos que conheci chorava com uma facilidade! Sabe, lágrimas que escorrem sem que a face se transforme, a pobre vítima do destino, da família, dos amigos, dos namorados. Um choro de novela, sem que a emoção transfigure a face e mostre a dor real que se sente. A partir da segunda vez, fiquei esperta para esse tipo de choro (…) Requerer a lágrima como atestado da verdade que se diz é ignorar completamente a natureza humana’.
Foi decretada a prisão preventiva dos irmãos Cravinhos por terem dado uma entrevista. Foi decretada a prisão de Suzane por ter dado uma entrevista. O país ainda é incapaz de fazer justiça sem vingança, de condenar sem atropelar direitos individuais. E de perceber que o direito de opinião está sendo atropelado.