A síndrome das crises
Passados seis meses de crises constantes e contínuas envolvendo o Congresso Nacional, e somando-se a anos de crises intermitentes em todas as instituições republicanas do país, deve estranhar ao leitor e ouvinte mais exigente a dificuldade da imprensa em colocar na agenda pública um debate sério e profundo sobre o tema.
Por que a democracia brasileira demora tanto a se consolidar, por que nossas instituições parecem tão permeáveis à influência de antiquados coronéis que deveriam estar aposentados em algum cesto da História e tão vulneráveis à ação de grupos criminosos tão primários quanto os que são flagrados em cada crise?
Vamos arriscar um palpite, apenas para provocar reflexões: talvez porque a origem do problema seja exatamente o tipo de democracia que construímos com o fim da ditadura militar e porque ela, a imprensa, faça parte da essência desse problema.
O movimento pela redemocratização tem um ponto simbólico na ‘Carta aos Brasileiros’, pronunciada pelo jurista Goffredo da Silva Telles Jr., recentemente falecido, nas arcadas da Faculdade de Direito no Largo de São Francisco, em São Paulo, no dia 11 de agosto de 1977.
Esse documento era uma ‘proclamação de princípios’ de uma elite que, treze anos antes, havia apoiado com igual fervor o golpe militar de 1964.
Era uma ‘carta aos brasileiros’, mas estava longe de ser uma ‘carta dos brasileiros’.
Essa a sutileza central que faz de Goffredo Telles a figura emblemática do momento em que a elite brasileira, essencialmente a elite jurídica paulista e fluminense, se organiza para tentar reconduzir o Brasil aos trilhos da ordem democrática.
Mas, de qual democracia?
A despeito das arrebatadoras palavras que declaravam uma única origem aceitável para o poder político – na frase ‘o poder emana do povo’ –, a partir daquele momento as forças políticas da oposição ao regime militar delimitavam as características de uma democracia que seria, dez anos depois, consolidada na Assembléia Constituinte.
A base do poder que emergiu da nova Constituição não era mais ‘o povo’.
Era a ‘sociedade civil organizada’.
A democracia corporativista
Observe-se agora as instituições brasileiras, aquelas que foram erigidas com base nesse conceito muito particular, muito elitista e muito conservador de democracia.
A sociedade civil organizada, por definição, só agrega aqueles que conseguem se organizar.
Ficam de fora, desde o princípio, os excluídos de sempre.
Os jornalistas que estavam presentes ao ato no Largo de São Francisco há 32 anos sabem que ali não havia representantes de posseiros, de favelados, de desempregados, da pobreza que na época era medonha.
Não seria essa a origem da síndrome que torna impossível às nossas instituições públicas um semestre sequer sem uma crise e um grande escândalo?
Eis aí um bom tema para debate: será que os problemas institucionais do Brasil não teriam como origem a Constituinte de 1988, que, ao propor a Constituição cidadã, acabou por construir um arcabouço jurídico excludente?
Observe-se as características do Congresso Nacional, que mais se parece a um conclave de lobistas do que a uma casa de representantes do povo.
Observe-se também o sistema jurídico, as instituições policiais, os serviços públicos em geral, que funcionam sempre melhor para aqueles que são identificados com o núcleo daquilo que chamamos de cidadania, e que simplesmente não existem para os outros, ou são francamente hostis àqueles que não são identificados como integrantes da tal ‘sociedade civil organizada’.
Observe-se agora a imprensa.
Não apenas estruturalmente, mas também funcionalmente, a imprensa brasileira opera como caixa de ressonância dessa democracia corporativista cuidadosamente negociada em 1988.
Ela é parte dessa réplica em escala menor de uma sociedade democrática, mas funciona na prática como um grande clube, no qual apenas os protagonistas ‘validados’ têm direito a voz e imagem.
Funciona como porta-voz dessa democracia corporativista, e, como nossas instituições públicas, é muito menor do que o Brasil.
Talvez seja por isso que o noticiário sobre escândalos no Congresso Nacional pareça a muitos leitores como parte de uma grande encenação.
Uma grande ópera bufa.