Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Sobre falsidades e a responsabilidade da imprensa

Muito se tem falado a respeito da ética profissional dos advogados que levaram Suzane Richthofen a expor seus falsos sentimentos em rede nacional de televisão e na capa da mais vendida revista brasileira. Pouco ou nada se falou das responsabilidades da imprensa neste episódio. Como se ela não tivesse nenhuma. Tem. Toda.


Fala-se de farsa. É verdade. As lágrimas fingidas da assassina confessa dos próprios pais, suas falas mal ensaiadas diante das câmaras e do bloco de anotações das repórteres não constituem outra coisa – uma farsa. Quem fez a entrevista sabia que aquilo era uma farsa. Seria uma farsa particular até se tornar pública. Porque torná-la pública, então?


Nas primeiras aulas de jornalismo, ensina-se que nem tudo que se apura vai para o ar ou se publica. Se a informação é falsa, ela não merece ser publicada. Na medida em que se publica uma falsidade, quem o faz assume a responsabilidade pela falsidade, participa da farsa, mesmo que seja para denunciá-la. Então, por que publicar a falsa lágrima da mulher que matou os pais?


Fica evidente que os advogados pretenderam usar a imprensa para construir uma imagem positiva de sua cliente. Se deram mal. Desconstruíram o que ainda poderia restar de positivo na figura que defendem. Estão sendo cobrados por isso. A imprensa se vingou e usou a farsa montada com sua conivência em proveito próprio. Deu capa na revista e ibope alto na telinha. Para ela, ficou de graça.


Medida processual


Este é um jogo permanente entre fonte e jornalista. Cada um sabe que está sendo usado e deliberadamente busca usar o outro. Sempre foi assim e continuará sendo. É justo que os bônus e também os ônus deste jogo sejam equanimemente repartidos pelos participantes do jogo.


O interesse público é sempre uma boa razão para justificar a publicação de uma informação – esta é outra das lições básicas do bom jornalismo. Pergunta-se: qual o interesse público da entrevista de Suzane? O que ganha a sociedade em saber que além de assassina, a moça é fria e dissimulada. O máximo que as duas reportagens [Fantástico (9/4) e Veja (nº 1951, de 12/4/2006)] conseguem é antecipar o julgamento da ré, o que não é exatamente um bom serviço à convivência social. Para julgar Suzane, com a observância do devido processo legal e com o respeito aos direitos fundamentais do cidadão, mesmo sendo este cidadão uma mulher que matou os próprios pais, está marcado o Tribunal do Júri no dia 5 de junho próximo.


Por causa das entrevistas, a moça voltou para cadeia, mas nem isso pode ser creditado como um bom serviço prestado pela imprensa. O Ministério Público, com o oportunismo que lhe é característico, entrou em cena e fez o pedido para que fosse restabelecida a prisão preventiva de Suzane. Como se fosse crime fracassar no papel de atriz no desempenho de um personagem infeliz. Se Suzane merece cadeia, ela certamente a terá depois de devidamente julgada e condenada. Prisão preventiva não é pena, é medida processual e, portanto, não é instrumento para apenar ou fazer Justiça.


Últimas conseqüências


Voltando ao papel da imprensa no episódio, o que é certo é que não teria havido farsa se a tentativa de farsa não tivesse virado manchete. Da mesma forma que o sigilo do caseiro não teria sido quebrado se não tivesse sido divulgado na imprensa. Vejam: tanto o presidente da Caixa Econômica Federal quanto o ministro da Fazenda estão legalmente autorizados a tomar conhecimento do extrato de qualquer correntista. O que eles não podem fazer, e ninguém pode, é publicar na internet o extrato de quem quer que seja, como foi feito no site de uma revista. Sem divulgação da informação sigilosa, não há quebra de sigilo.


Neste caso, também, quem vazou a informação pretendeu usar a imprensa e acabou sendo usado pela imprensa, que deu um furo. Mas as responsabilidades não foram distribuídas com a mesma equanimidade.


Tanto a publicação do extrato do caseiro como a exibição da falsa lágrima da assassina fazem parte do show da mídia, desta tendência universal e irreversível de transformar tudo e qualquer coisa num espetáculo para comover platéias. Informação é outra coisa, mas tudo bem. É muito salutar que seja garantido às últimas conseqüências o direito de informação. Que a imprensa publique absolutamente tudo que julgar no seu direito. Mas é igualmente muito salutar que responda pelo que escreve, fala e exibe.

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Diretor de redação do site Consultor Jurídico