Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Fatos pregam peça no Corriere

Quinta-feira, 11 de março de 2004. Quando saí de casa não eram 6 da manhã. O dia, nesse fim de inverno, ainda não se fizera de todo claro, ruas vazias cobertas de neve. Estava indo pegar o trem das 6h08 para Veneza.

Cheguei à estação, o jornaleiro estava acabando de abrir, pedi-lhe o Corriere della Sera (mais tradicional jornal italiano). Os diários ainda não tinham sido colocados na banca, e ele teve que encontrá-lo num pacote posto no chão.

Sento no trem e abro meu jornal. Logo na primeira página, um artigo assinado por Michele Salvati, ‘O milagre de Madri: uma classe dirigente’. Interesso-me muito pela Espanha, primeiro pela ligação com a história de Portugal, e conseqüentemente com a do Brasil, e, segundo, liguei-me afetivamente ao país e a seu maravilhoso povo, apesar de só conhecer Madri.

Na União Européia, os grandes do G-7, Grã-Bretanha, Alemanha, França e Itália (os demais são Estados Unidos, Canadá e Japão) consideram a Espanha como do baixo clero, pois estaria em 10º lugar no ranking econômico. O articulista nos faz ver outra realidade, um país que conseguiu realizar uma admirável transição da ditadura franquista para a democracia, com crescimento superior à média européia, e que esse sucesso econômico não é causa, mas conseqüência de um sistema partidário que funciona, que conseguiu criar uma classe dirigente que, antes de se alinhar a socialistas (PSOE) ou populares (PP), alinha-se com a Espanha.

A matéria, como era de se esperar, referia-se também aos movimentos separatistas basco e catalão, ao terrorismo, à corrupção partidária denunciada pela Justiça e à ligação do governo anterior a grupos antiterroristas secretos, que mataram mais de 20 ditos terroristas bascos. Contudo, termina com otimismo sobre as eleições que aconteceriam no domingo. Como disse Salvati, ‘isso já é assunto para o próximo artigo’.

Na cesta de lixo

Leio mais alguma coisa e adormeço. Acordo com o trem chegando ao destino. O vagão estava cheio, muitos passageiros subiram nas paradas do percurso: jovens estudantes que iam para a universidade, executivos a caminho dos negócios e simplesmente aqueles que iam ao encontro da dita cidade mais bonita do mundo.

Entrar em Veneza sempre foi um deslumbramento, nem sei quantas vezes o fiz, mas a emoção nunca mudou. Preparando-me para tal, vou até o bar da estação tomar um café. A televisão está ligada, muitas pessoas atentas, vejo um trem desventrado, a câmera dirige-se aos trilhos, um horror: corpos mutilados, pernas, braços espalhados. Não consigo entender o que está acontecendo, mas em poucos segundo percebo que enquanto cochilava no trem Madri, minha querida cidade do Museu do Prado, do Palácio Real, da Gran Via, da Plaza Mayor, havia sido profanada pelo terrorismo. Uma dezena de bombas tinha explodido em vários trens, fazendo mortos e feridos.

Nem tomo meu café. Vou saindo a passos trôpegos da estação, o estado de choque pela primeira vez faz com que Veneza não me deslumbre.

Vejo uma cesta de lixo e jogo fora meu jornal. Ele estava superado, o próximo artigo de Salvati trataria de outra coisa. A imbecilidade humana, além de tudo, havia pregado uma peça na imprensa.

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Jornalista, Belluno, Itália