Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O supermercado de subserviência

Os espectadores de televisão não apenas preferem a natureza altamente competitiva de programas interativos, como gostam de comerciais interativos. A conclusão é de um estudo do Centro de Desenho de Mídia da Ball State University, publicado na semana passada no noticiário eletrônico Radio and Television Business Report.

O estudo – ‘The power of play: exploring the impact of the iTV 2 – Screen gaming experience’ – foi feito em parceria com a GSN (uma rede de televisão especializada em games online). O noticiário acredita que essa pesquisa é a primeira a examinar como os espectadores se relacionam com a TV interativa nos EUA.

A maioria dos entrevistados acredita que a competição é um fator determinante na experiência interativa. Em média, 76% dos espectadores que interagem com os jogos oferecidos pela televisão (em que os participantes estão tanto no auditório quanto jogando remotamente) também interagem com comerciais interativos. A maior parte desses espectadores se decepciona quando um break não inclui comerciais interativos. Isso deve ser visto como uma clara tendência da demanda por interatividade.

Coisa restrita a jogos eletrônicos? Engana-se quem pensar dessa maneira. Na quarta-feira (5/4), durante o MIP-TV, em Cannes, a Academia de Artes e Ciências de Televisão anunciou os vencedores dos primeiros prêmios Emmy para TV interativa.

Os Emmy existem há 58 anos e estão para a televisão assim como os Oscar estão para o cinema. A Academy of Television Arts and Sciences tem um papel para o business da TV aberta americana também análogo ao da academia de cinema. A inclusão de novas categorias, portanto, não é leviana. Os três primeiros Emmy para essa categoria foram concedidos a um programa interativo, uma emissora interativa e um serviço interativo.

O programa, Cult, produzido pela Streampower/France 5, é um show interativo diário de uma hora dedicado à cultura urbana. Apresentado por Ray Cokes, Cult é voltado para uma audiência entre 15 e 35 anos de idade. Todo espectador equipado com uma webcam e conectado a um provedor de internet de alta velocidade pode participar. O programa se apresenta como anticonformista e voltado para uma ação multiculturalista.

A emissora Scamp, da Grã-Bretanha, é um canal interativo on-demand para crianças. Elas podem ver seus programas favoritos na ordem em que quiserem e organizar uma lista pessoal. Para as que ainda não aprenderam a ler, há janelas focadas nos personagens associados aos programas.

O serviço de televisão interativa escolhido foi o Hello D, a principal operadora da Coréia do Sul, considerada um modelo de facilidade de navegação por seus mais de 100 canais, 21 canais de pay-per-view e serviços de VOD (video-on-demand).

Soluções difíceis

Há no mundo inteiro uma explosão por serviços interativos e programação interativa. Que tipo de programação é essa? Aí está uma questão ainda não respondida, que pode e vai mudar o curso da televisão no mundo inteiro e que poderia – mas não sabemos se vai conseguir – mudar o papel do Brasil neste cenário.

Stuart Volkov, analista de novas mídias baseado em Los Angeles, refere-se a um comentário que ouviu de Josh Sapan, CEO da Rainbow Media: ‘TV interativa é um nome chique para video-on-demand‘. É um comentário simplista, admite Volkov, embora pareça verdadeiro perto do que se vê neste momento. O momento referido pelo analista é um showcase de produção interativa realizado em fevereiro pelo Laboratório de Conteúdo Digital do American Film Institute (AFI). A prevalência do video-on-demand intrigou Volkov e provavelmente qualquer assistente com mais de dois neurônios.

Essa é a questão essencial. Num lado da linha, há uma clara demanda por programação interativa. Os jovens com menos de 35 anos, incluindo as crianças em fase de alfabetização, como lembra o estudo da Ball State University, já começam a apresentar sinais de intolerância com a televisão linear. Do outro lado, há o que chamou a atenção de Volkov: a intrigante dificuldade de se encontrar soluções para a construção desse conteúdo.

Prioridade mundial

Em artigo publicado na Folha de S.Paulo (2/4/2006), ‘TV Digital – o que importa é o conteúdo‘ [rolar a página], o ministro da Cultura Gilberto Gil e o secretário de Audiovisual, Orlando Senna, lembram que a questão crucial na implantação da TV digital no país não é o padrão a ser adotado e de certa forma nem mesmo o modelo de negócios, mas o seu impacto na construção de conteúdo original.

Trata-se de um conceito que tem sido reiteradamente exposto por este Observatório pelo menos desde 2004. Vide, por exemplo, ‘Os falcões do tráfico e a questão digital‘ (22/3/2006), ‘O futuro digital já é passado‘ (11/1/2005), ‘A verdadeira natureza do embate digital‘ (20/2/2006), ‘As divergências em torno da convergência‘ (24/5/2005), ‘Por um lugar na fila dos beneficiários digitais‘ (20/9/2005), ‘Entre o melhor e o menos pior‘ (4/5/2004), ‘TV digital e o desastre anunciado‘ (12/10/2004), ‘As dissidências e a utopia do consenso‘ (16/11/2004).

A construção de modelos de conteúdo capazes de utilizar a capacidade interativa disponibilizada pelas plataformas digitais vai se tornar muito rapidamente a prioridade em todo o mundo. Já poderia ter se tornado prioridade no Brasil, por várias razões. Basta uma para tornar todas as demais reiterativas: essas pesquisas não requerem investimentos do peso dos exigidos para o desenvolvimento de plataformas tecnológicas e podem resultar em royalties muito maiores para o país.

Broadcasters surpreendidos

Além disso, essas pesquisas podem reduzir dramaticamente a enorme dependência do Brasil não apenas a conteúdos estrangeiros, mas principalmente a modelos de conteúdo estrangeiros. A dependência a modelos de conteúdo é uma afronta não apenas à indústria de conteúdo, mas também e sobretudo à identidade nacional e à auto-estima da população.

Desgraçadamente, a percepção do que pode representar a pesquisa de modelos de conteúdo no Brasil é canhestra. Temos dificuldade em entender que a manifestação de cultura é plural. Que o conhecimento não pode ser aprisionado. Que não é desejável, por exemplo, que a voz da periferia tenha que ser amplificada por grandes corporações de mídia para que possa ser ouvida pelo resto da sociedade.

A explosão da demanda por serviços interativos (que, segundo a pilhéria de Josh Sapan, resume-se ainda na maior parte à distribuição de conteúdo, mas que muito em breve vai se concentrar na construção de conteúdos específicos) pode ser vista em toda parte. Retardá-la terá o mesmo efeito de se tentar conter uma força da natureza: ela virá, mas trazendo estragos no lugar de benefícios.

‘Os broadcasters tentaram, por muito tempo, convencer a sociedade de que apenas eles eram suficientes, de que eles ofereciam tudo. Mas eles não se deram conta da importância que havia para a sociedade a possibilidade de passar de três, quatro canais que eram assistidos para 50 ou mais’. A afirmação não é de qualquer ativista brasileiro pela ampliação do espectro da TV digital, mas de Brian Lamb, CEO da C-Span, um dos respeitados executivos da indústria de TV a cabo nos EUA. Ela está contida no boletim eletrônico Pay-TV News de segunda-feira (10/4) e refere-se à cobertura do NCTA Cable 2006, em Atlanta.

Infame supermercado

Nos EUA, a indústria de TV por assinatura prosperou. Ali foi desenvolvido o conceito de redes internacionais. Essas redes levaram menos de 20 anos para estar presentes em todo o mundo. No Brasil, como em muitos outros países, elas hoje são hegemônicas nas grades das operadoras de TV por assinatura. O produtor brasileiro que quiser produzir para elas terá que rezar por suas cartilhas. Do contrário, ficará fora não apenas das grades internacionais, mas das grades de seu próprio país. São cartilhas desenhadas por yuppies semi-alfabetizados, que dizem exatamente o que e como se deve produzir para a TV por assinatura. É uma situação grotesca, para dizer o mínimo. Teria sido diferente se a indústria de TV por assinatura no Brasil tivesse sido montada tendo como núcleo as redes, e não as operadoras.

O desenvolvimento das redes de TV por assinatura nos EUA não impactou negativamente os broadcasters, que continuam fazendo boa televisão e má televisão. Simplesmente abriu um novo mercado. E, ironicamente, se o antigo conceito do imperialismo cultural pudesse ser aplicado ao mercado internacional de televisão, ele estaria sobre os ombros das redes internacionais de TV por assinatura, não das redes abertas americanas.

A televisão está mudando e, para a sociedade brasileira, o núcleo dessa mudança não está na disputa entre radiodifusores e teles. Não está tampouco na definição de modelos de negócios que se pareçam com os atuais ou sejam bastante diferentes. O núcleo está na capacidade de construir conteúdo adequado às novas plataformas. Capacidade e determinação. É isso que vai determinar se vamos desenhar uma televisão melhor e mais democrática, ou se vamos esperar para mais uma vez sair às compras no infame supermercado do conteúdo e da subserviência.

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Jornalista