Ao ratificar a Convenção Americana de Direitos Humanos, em setembro de 1992, o Brasil dava continuidade ao seu processo de inserção no sistema internacional de proteção aos direitos humanos, iniciado com a chamada ‘redemocratização’ em 1985. Entre tantos documentos ratificados, o Estado brasileiro incorporou ao seu corpo legislativo inúmeros tratados, protocolos e convenções que abordam as mais diversas temáticas: direitos das crianças e mulheres, prevenção e punição contra atos de tortura.
A Convenção citada, também conhecida como pacto de San José, traz um artigo que aponta explicitamente a comunicação como um direito humano. Diz o artigo 13:
‘Toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito inclui a liberdade de procurar, receber e difundir informações e idéias de qualquer natureza, sem considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística ou por qualquer meio de sua escolha’.
O detalhamento do direito à comunicação no documento, porém, não se resume a este ponto e avança muito em relação à Declaração de 1948, por exemplo. Desta forma, o Pacto afirma:
‘Não se pode restringir o direito de expressão por vias e meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de freqüências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de idéias e opiniões’.
Como é notório, no entanto, o simples reconhecimento de um direito humano não garante a sua realização. Ao contrário, o desafio no caminho da efetivação de cada novo direito humano – visto que estamos lidando com uma construção histórica e social, e não com direitos ‘naturais’ – é bem mais longo e espinhoso do que o estabelecimento da sua legitimidade nos mais diversos âmbitos espaciais (internacional, nacional e local).
A rigor, a concepção que enxerga a comunicação como um direito humano está longe de ser abraçada no Brasil. Alguns passos recentes foram dados nesse sentido, mas a visão limitada do consagrado ‘direito à informação’ – dimensão fundamental, embora nem de longe esgotante, do direito humano à comunicação (DhC) – entre outros fatores, dificulta a apreensão desta percepção.
O debate sobre a implantação da TV e do rádio digitais, muito mais do que uma questão meramente tecnológica ou comercial, acontece numa conjuntura política que permite colocar na ordem do dia a análise da situação do DhC no país. Não nos iludamos, porém, imaginando que o governo federal vai abraçar esta perspectiva. Cabe às organizações e movimentos da sociedade civil progressista, em conjunto com aliados dentro do Estado, como parlamentares, Ministério Público e outros, realizar essa análise de forma mais ampla e aprofundada possível. Isso não implica, obviamente, deixar de lado as ações táticas e estratégicas na árdua batalha pelos rumos da digitalização do rádio e da TV. Ao incorporar à sua práxis política a abordagem e os mecanismos de luta dos direitos humanos, os atores contra-hegemônicos nesta disputa, em evidente desvantagem, qualificam e elevam a outro patamar a sua intervenção.
Violações flagrantes
No paradigma teórico e político contemporâneo, o Estado tem obrigações referentes aos direitos humanos em pelo menos quatro dimensões.
Ele deve respeitar os direitos humanos e não pode, sob qualquer justificativa, praticar atos – normas, políticas, programas etc. – que comprometam a efetividade dos direitos. O Estado também deve proteger os habitantes de seu território contra ações de terceiros – empresas, indivíduos ou mesmo entes públicos – que violem os direitos destes. Para isso, é necessário criar uma rede de proteção aos direitos humanos. Por exemplo, as estruturas do Estado que fiscalizam setores específicos (como a Agência de Vigilância Sanitária/ANVISA ou a Agência Nacional de Saúde/ANS). Além disso, o Estado tem a incumbência de prover os direitos de indivíduos ou grupos sociais em situações emergenciais. Assim, o fornecimento de cestas básicas a famílias desprovidas das condições de adquirir ou produzir seus próprios alimentos, para utilizar um exemplo comum em nosso país, não pode ser encarada como favor ou assistencialismo, mas sim como obrigação do poder público.
Por fim, o Estado é obrigado a promover ações que facilitem a efetivação dos direitos, tais como elaboração e execução de normas e políticas públicas, decisões que levem em conta o primado da pessoa humana e seus direitos fundamentais, entre outras. No caso da digitalização da comunicação, não se pode exigir do Estado menos do que a otimização do uso do espectro eletromagnético – patrimônio público que deve contemplar a diversidade política, cultural, racial, religiosa, de opção sexual, geração e gênero que marca a sociedade brasileira – pois somente a entrada de novos atores na esfera da TV aberta pode garantir essa diversidade necessária.
No tocante à comunicação, vivemos há décadas numa situação de flagrante violação aos direitos da imensa maioria da população. A evolução da tecnologia, que poderia permitir uma comunicação mais democrática e equilibrada entre os diversos segmentos sociais, porta-vozes de interesses distintos e por vezes conflitantes, é utilizada para aprofundar o fosso que separa os ‘opinadores’ dos ‘opinados’, os falantes dos ouvintes. O monopólio – ou oligopólio, se utilizarmos o critério quantitativo no lugar do político – da comunicação no Brasil é formado por cerca de sete ou oito grupos, na maioria familiares, que controlam quase tudo aquilo que é lido, assistido e ouvido pela nação.
A teia de corporações de mídia que se entrelaçam de maneira pouco visível à primeira vista é bastante uniforme na difusão dos conteúdos que expressam seus pontos de vista sobre as grandes questões do país: economia, religião, política, cultura e, sobretudo, modos de organização e vivência social. As divergências constituem exceções marginais que não colocam em risco o modelo hegemônico.
Neste contexto, aprendemos, desde que conseguimos decifrar os códigos lingüísticos e simbólicos que compõem nosso mundo, que as mulheres constituem o ‘sexo frágil’, que os negros e negras são pessoas sujas, que os muçulmanos são ‘fundamentalistas’, que os xiitas e são ‘radicais’, que comunistas comem criancinhas, que trabalhadores e trabalhadoras sem terra e sem teto são delinqüentes em potencial, entre tantos outros estereótipos e preconceitos bombardeados, legitimados e reforçados pela mídia, a maior ‘escola’ da sociedade contemporânea.
As vozes que contestam isso – e o próprio modelo de sociedade no qual estamos inseridos – são desqualificadas, apagadas e jogadas na lata de lixo da história não oficial, se muito. Na sociedade do ‘Estado democrático de direito’, falar em democracia na comunicação soa, no ponto de vista dos setores dominantes, romântico, ingênuo ou utópico. Sequer existe a possibilidade de discutir, na mídia, as possibilidades que a ‘democracia’ teria a ganhar com a própria mídia. Como o sociólogo Pierre Bourdieu lembra, se a televisão fosse também utilizada para outros fins que não apenas o ‘infotenimento’, teríamos diante de nós uma ferramenta verdadeiramente revolucionária.
Na realidade cotidiana brasileira, mais de duas mil emissoras de rádio de baixa potência são fechadas por ano. A maioria, em ações violentas e arbitrárias contra pessoas pobres, prática que já causou até a morte de uma senhora idosa por enfarto cardíaco, em Teresina (PI). Boa parte de tais ações também ocorre sem base legal. Aliás, a contradição é grotesca: o mesmo Estado que funciona de modo a impedir ou restringir ao extremo a regularização destas emissoras vale-se da força policial para reprimi-las duramente por não estarem ‘legalizadas’. É como se alguém fosse condenado por não ter pago uma dívida cujo suposto credor se recusa a reconhecer o débito.
Ademais, sob a justificativa da ‘livre concorrência’, pequenos veículos impressos nacionais são condenados ao desaparecimento ou ao ostracismo, caso pretendam ostentar uma linha editorial independente ou contra-hegemônica. Nem mesmo nos países capitalistas avançados o ‘livre mercado’ é tão livre assim.
Redenção ou condenação?
No presente momento, o governo federal está prestes a definir os sistemas a serem adotados para as transmissões digitais da TV e do rádio. Em resumo, estão em jogo duas posições: os empresários da comunicação e seus aliados políticos, em todos os espaços do Estado, evitam o debate político como o diabo foge da cruz. Simplesmente porque defendem e exercem forte pressão política no sentido de fazer prevalecer a lógica mercadológica sobre o interesse coletivo. Tal lobby também vem sendo propagado abertamente através das próprias concessões públicas de rádio e TV, que deveriam, em tese, primar pela preponderância das necessidades coletivas sobre os interesses particularistas.
Do outro lado, organizações e movimentos sociais progressistas dos mais variados matizes defendem a dilatação e a diversificado do conjunto de vozes na ‘esfera pública midiática’, com a possível e desejável ampliação de novos canais tanto para a TV quanto para o rádio. Soma-se a isto a proposta da transformação da televisão num aparelho que permita a execução do maior programa de inclusão digital do mundo, uma vez que a convergência de mídias levará inevitavelmente à fusão entre os diversos tipos de tecnologias de comunicação e informação. Em pouco tempo, a TV digital poderá, sem exagero, fazer a Internet se tornar artigo de museu ou brincadeira de criança.
Portanto, o governo federal se encontra diante de uma encruzilhada: pode tomar decisões que signifiquem um avanço importante rumo à realização do direito humano à comunicação ou pode perpetuar e até reforçar o contexto caracterizado por tantas e tão graves violações a este direito. Caso a opção feita seja esta última, a cobrança virá com força, e por todos os meios disponíveis, para que ela seja revertida em favor dos anseios reais da maioria da população.
Uma parcela da sociedade está acompanhando e intervindo neste processo, com sérias limitações, inerentes às suas próprias condições e também impostas pelo Estado. Mas é fundamental que as principais organizações e redes de movimentos sociais se apropriem deste debate e incorporem esta pauta. O que está em disputa não se resume à criação e ocupação de novos canais de rádio e TV, mas sim as definições sobre um pilar fundamental da sociabilidade de qualquer nação, que irão perdurar pelas próximas duas ou três décadas em nosso país.
Além do mais, ainda não privatizaram os sonhos, e custa menos ainda sonhar algo tão factível: imagine um canal de alcance nacional com a programação toda produzida pelas organizações e movimentos que defendem e promovem os direitos humanos, que resistem e se contrapõem a um sistema que personifica coisas e ‘coisifica’ pessoas. Você consegue imaginar esta emissora? Eu consigo.
Não custa lembrar que os direitos humanos são indissociáveis e interdependentes entre si. E que a luta pela construção de uma outra mídia representa e traduz a própria luta pela efetivação dos direitos humanos em nossa sociedade tão contraditória.
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Jornalista da Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos (ABRANDH) e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social