Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Manuel Pinto

‘Ouvir as partes implicadas numa notícia é uma das regras básicas do jornalismo. No Código Deontológico dos jornalistas portugueses o assunto vem logo no primeiro ponto. Depois de advertir que ‘o jornalista deve relatar os factos com rigor e exactidão e interpretá-los com honestidade’, esse texto de referência estabelece ‘os factos devem ser comprovados, ouvindo as partes com interesses atendíveis no caso’.

Muitas vezes pensa-se que os ‘interesses atendíveis no caso’ são apenas aqueles que se relacionam com quem é objecto de acusação ou de denúncia. Mas há outras razões para seguir o preceito deontológico. Vejamos dois casos publicados recentemente pelo Jornal de Notícias.

No passado dia 10, a peça de abertura da secção ‘País’ trazia a toda a largura da página um título forte ‘Estudantes sem dinheiro abandonam universidade’. E, em subtítulo, acompanhada do termo ‘crise’, vinha a súmula da notícia: ‘Nos últimos dois anos, mil alunos foram obrigados a deixar o estabelecimento [a Universidade de Coimbra] por falta de condições. Associação Académica diz que tem 200 cartas com pedidos desesperados de apoio’.

A informação que vem no corpo da peça assume um tom menos peremptório, já que em vez do ‘foram obrigados a deixar o estabelecimento’, aparece ‘terão abandonado os estudos’. Mas, no essencial, a informação está lá, acompanhada de quatro depoimentos que apontam para o tal contexto de crise, embora nenhum envolvendo estudantes na situação descrita no título.

Qual a fonte a que recorre o jornalista autor da peça, para suportar a informação veiculada? Um dirigente da Associação Académica de Coimbra responsável pelo pelouro das saídas profissionais, que, diz o texto do JN, ‘se afirma muito preocupado (?) em ‘resolver o problema grave dos 200 universitários que pediram ajuda à Direcção Geral da AAC, queixando-se de não terem dinheiro para pagar as propinas’.

Ninguém contestará que este é um assunto importante, de evidente interesse jornalístico, ao qual o JN não podia deixar de dar destaque. Mas, analisando com mais atenção, verificamos, em primeiro lugar, que a notícia deixa pouco claro se os dados relativos aos tais mil estudantes que terão abandonado os estudos se referem à Universidade de Coimbra ou ao conjunto de instituições de ensino superior (universitário e politécnico) existentes naquela cidade. É que, logo no início do artigo, se alude a ‘alunos do ensino superior’.

Por outro lado – e este é o aspecto mais problemático – poderá sempre surgir a pergunta sobre o rigor do número apontado. Sem querer ajuizar sobre o que diz o dirigente associativo, a verdade é que as associações académicas, e a de Coimbra de modo particular, conduzem, desde há largos meses, uma luta contra o valor das propinas, argumentando precisamente que os respectivos montantes tornam a vida de muitos estudantes extraordinariamente difícil. Por outras palavras para que a informação fornecida pelo dirigente académico adquirisse toda a sua força, carecia, do meu ponto de vista, de ser validada em outras fontes. Assim, ainda que seja verdadeira, fica sempre em aberto a possibilidade de o não ser. O jornalista autor do trabalho, convidado por duas vezes a comentar esta matéria, não respondeu ao provedor.

O outro caso foi publicado no JN do dia 15, terça-feira passada. Numa peça que abre a secção de Grande Porto, apresenta-se um quadro de possibilidades para a eleição do sucessor de Valentim Loureiro à frente da Junta Metropolitana do Porto. Perante a ausência de candidatos assumidos e face à maioria de presidentes de Câmara social-democratas na área metropolitana, o JN refere, na matéria publicada, que procurou ouvir a posição do presidente da Distrital do PSD/Porto, Marco António Costa. Mas acrescenta que este ‘esteve incontactável’. Acontece que, numa outra peça de diferente autoria, publicada na mesma secção e no mesmo dia, se dá conta que os deputados eleitos pelo círculo do Porto haviam anunciado na véspera o propósito de propor a criação de um Observatório sobre o Desenvolvimento da Região Norte. Quem anunciou a medida? Precisamente Marco António Costa, numa conferência de Imprensa.

A pergunta é óbvia como é que o JN diz, num lado, que o líder da distrital do PSD esteve incontactável e, umas páginas adiante, informa que esteve com ele? Questionado sobre o assunto, o coordenador da secção dá uma explicação que faz sentido: a conferência de Imprensa realizou-se de manhã e a peça sobre a Junta Metropolitana foi elaborada à tarde, no dia anterior. Acontece que, para o leitor, conta o que é publicado e, a essa luz, a contradição é flagrante. A quem coordena e edita cabe dar uma explicação a quem lê. Em nome do respeito do leitor e da credibilidade do Jornal.

Chamada de atenção de um grupo de leitores

Um grupo de seis ‘fiéis leitores’ de Rio Tinto endereçou ao provedor uma mensagem de ‘enorme perplexidade e preocupação’ acerca do ‘actual rumo noticioso do jornal’.

Assumindo-se como cidadãos defensores de ‘um projecto político e ideológico de esquerda’, embora ‘respeitando e tolerando o direito à diferença e à livre manifestação de opiniões políticas diferentes’, o grupo entende que o JN ‘tem sistematicamente violado, negligenciado, marginalizado ou simplesmente ignorado ideias e propostas e outras notícias de certas vozes veiculadas por certas forças políticas mais incómodas e inconformadas (nomeadamente o PCP ou a coligação respectiva, CDU’. Essa imputada marginalização contrastaria, segundo os subscritores, com o destaque dado em meses recentes àquilo a que chamam ‘figurantes políticos’, no caso Fátima Felgueiras, Ferreira Torres, Valentim Loureiro e Isaltino Morais.

Num parágrafo, António Silva, Fernando Valente, Gonçalo Ribeiro, José Fernandes, Luís Vasco e Vítor Monteiro explicitam o seu ponto de vista sobre este Jornal

‘O JN sempre foi para nós um jornal de referência, onde a informação se pautava pela isenção e seriedade, se exercia sem dogmatismos e cumpria a sua vertente formativa sem servilismos, o porta-voz da verdade, o estandarte dos injustiçados e humilhados’. Seria com ‘enorme desgosto e apreensão’ que veriam estes princípios e valores ‘vilipendiados e ofendidos’.

Dizem ainda os leitores rejeitar ‘uma comunicação social amordaçada e alienadora’ que se limitasse a ser ‘eco deste sistema de rotativismo amorfo e cinzento, só comparável ao período (?) entre 1893 e 1906 (onde o Partido Progressista e do Partido Regenerador se alternavam no poder)’.

O provedor não pode deixar de agradecer esta tomada de posição. Ela representa o assumir de direitos e deveres da cidadania ainda pouco praticados entre nós, nestes terrenos do jornalismo e dos media. Haver quem, de forma frontal e argumentada emite o seu ponto de vista só pode constituir um alerta e uma ajuda para quem tem responsabilidades na condução do jornal, que – tenho tido essa garantia – não se norteia por qualquer tipo de atitude discriminatória.

A imagem idílica que os leitores traçam do que foi o JN no passado – ‘porta-voz da verdade, o estandarte dos injustiçados e humilhados’ – tem de ser temperada. Ela faz sem dúvida parte do património do jornal, mas foi edificada através de muitas contradições e conflitos. Desde sempre me lembro de alertas e de críticas de teor não muito distinto, vindas nomeadamente do mesmo sector do espectro político destes leitores. Em todo o caso, esta nota não pode servir para branquear o teor das críticas feitas, que ficam como aguilhão à ponderação e consciência dos profissionais desta Casa, nestes tempos já pautados pela eleição presidencial.

Dois casos em que os leitores mereciam mais informação.’