Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Judas chegou antes da Páscoa

A National Geographic antecipou a chegada de Judas nesta quaresma, ao dedicar-lhe o tema da capa de sua tradicional revista e anunciar a exibição de documentário sobre um manuscrito polêmico, lançado nos EUA, dia 6 deste abril.


São 26 folhas de papiro, de um total de 66, encontradas na década de 1970 numa caverna de El Minya, no deserto do Egito. Da autoria anônima de cristãos gnósticos, o documento foi escrito originalmente em grego no ano 180 e traduzido para o copta entre 220 e 340. Tem, pois, cerca de 17 séculos de idade. A tradução para o inglês foi supervisionada por Marvin Meyer, professor de Estudos Bíblicos e Cristãos na Chapman University, da Califórnia.


O documento foi autenticado mediante cinco provas: carbono 14, tinta, multiespectral, contextual e paleográfica.


Era necessário examinar com cuidado, pois o tráfico de antiguidades cristãs está aumentando muito e não se respeita mais nada. Em outubro de 2002, um sujeito vendeu no mercado internacional de relíquias uma caixinha de pedra com os supostos ossos do apóstolo Tiago. O autor da fraude mandou inscrever na tampa: ‘Tiago, filho de José, irmão de Jesus’. Quem enterraria alguém com esses dizeres naquela época?


No complexo sistema das designações de parentesco, o primo hebraico semelhava o nosso primo-irmão. Por isso, alguns estudiosos sustentam que Jesus, este dileto filho do judaísmo, teve irmãos, não foi filho único, pois a palavra que designava seus primos podia aplicar-se também a irmãos.


Grego, hebraico e aramaico


A tese do manuscrito não é nova: Judas não traiu Jesus. Vários escritores deram outras versões da suposta traição, inclusive no Brasil, de que são exemplos o ensaio de Danilo Nunes, ‘Judas: traidor ou traído?’, e o romance Evangelho de Judas, de Sílvio Fiorani.


Danilo Nunes, que foi deputado pela UDN, sustenta que, a pedido de Jesus, Judas o entregou às autoridades como estratégia de reação do povo contra a dominação romana. Deu tudo errado, como se sabe.


Sílvio Fiorani, que acaba de arrebatar prestigioso prêmio da Biblioteca Nacional por seu mais recente romance, Investigação sobre Ariel, recorreu à História, aos evangelhos canônicos e a diversos apócrifos para tratar de um Jesus e de um Judas conhecidos de poucos, sem desprezar antiga versão que apresenta Jesus como filho de Pantera e Miriam – ele um soldado romano, ela uma donzela galiléia.


Com o mesmo título, Roberto Prazzi publicou pelo Editorial Presença, em 1992, romance em que Cornélia Lucina, filha do poeta Cornélio Galo, leva ao imperador Tibério, então exilado em Capri, o manuscrito que dá título ao livro: Evangelho de Judas.


Excluídas hipóteses lendárias, apócrifas, ficcionais e outras igualmente controversas, os Evangelhos canônicos reconhecem, porém, que havia um xará de Judas entre os apóstolos e por isso o traidor foi sempre chamado de Judas Iscariotes, indicando que ele era da localidade de Querioth, portanto o único da Judéia. Todos os outros discípulos eram da Galiléia.


Outra forma de os primeiros narradores distinguirem um Judas de outro consistia em qualificar ou desqualificar Judas, acrescentando a palavra prodotes ao nome dele. Prodotes em grego significa traidor. Os evangelistas escreviam em grego naquela região em que, além do grego e do latim, eram correntes ainda o hebraico e o aramaico. Jesus, por exemplo, pregava em aramaico, mas quando discutiu com os doutores no templo, o fez em hebraico, língua em que foi escrita a Torá, a parte judaica da Bíblia, à qual foi acrescentado depois o Novo Testamento.


O valor das moedas


Textos em que se apóiam religiões são sempre controversos. Jorge Luís Borges tratou do caso Judas em vários textos, entre os quais A Seita dos Trinta e Três Versões de Judas. Neste último refere o livro Kristus och Judas, de Nils Runeberg. O autor alemão sustentou a tese de que não era necessário trair Jesus. Ele pregava todos os dias, inclusive aprontou feio na expulsão dos agiotas e mercadores do templo, de modo que era muito conhecido de todos, inclusive das autoridades romanas e judaicas.


Em outros textos, Judas teria entregue Jesus para forçá-lo a declarar sua divindade. No caso do manuscrito agora encontrado, Jesus incentiva Judas a completar a operação porque tinha chegado a hora da libertação: o filho de Deus deixaria a provisória morada do corpo.


O autor inglês Thomas de Quincey, tratando de Judas, foi ainda mais radical: ‘Não uma, mas todas as coisas que a tradição atribui a Judas são falsas’.


Também no Novo Testamento as narrativas são controversas. O Evangelho de São Mateus diz que Judas enforcou-se no galho de uma árvore, tornando-se um suicida emblemático.


Os Atos dos Apóstolos contam as coisas de modo diferente: nem o galho da árvore quis ou pôde segurar o corpo e ele despencou sobre uma pedreira. Na queda, a barriga abriu-se (‘quebrou as costas’, dizem os Atos), e suas vísceras se espalharam no chão. Tendo havido muito sangue derramado, aquele campo foi chamado Acéldama, campo de sangue em hebraico. Os Evangelhos dão o mesmo nome ao terreno, mas dizem que no motivo da denominação foi o sangue de Cristo, não o de Judas..


Outra versão diz que Judas, arrependido, devolveu os trinta dinheiros (trinta siclos, preço de um escravo, na época) e retirou-se para o deserto, tornando-se piedoso eremita. Uma outra diz que, com o dinheiro, o traidor comprou aquele pedaço de terra. De todo modo, o terreno foi utilizado mais tarde para cemitério de estrangeiros.


Jornalismo irresponsável


A complexa personagem de Judas, cujo perfil controverso sofreu tantos acréscimos e retificações ao longo da História, é fascinante. Foi usada para propagar um bem organizado anti-semitismo, já que nos primeiros séculos, com o fim de mostrar-se útil ao império romano, a igreja fez questão de confundir a função de Judas com as de Caifás e Ananás, levando a uma trama no assassinato de Jesus, que livrava a cara de Pôncio Pilatos, o grande responsável, e inocentava os romanos ao creditar a judeus a delação, tortura e morte de Jesus.


Não nos esqueçamos de que de que até o Concílio Vaticano II, nas cerimônias da Sexta-Feira Santa, os missais mandavam rezar assim: ‘Oremus et pro perfidis Judaeis’ (oremos pelos pérfidos judeus)’. Apesar de ilustres figuras eclesiásticas insistirem que o adjetivo ‘perfidus’ significava apenas ‘descrente’, o certo é que nas traduções do missal latino o francês manteve ‘perfide’ e o alemão, ‘treulos’.


O latim tampouco deixa dúvidas: Suetônio, Horácio, Cícero e Tácito, entre outros, utilizam ‘perfidus’ como sinônimo de traidor, embora o latim tivesse também ‘proditor’, do grego prodotes, para designar o ‘perfidus’. Os dois, porém, significam delator, traidor. (Entre outros, Alberto Dines e Roberto Romano já aludiram ao tema aqui neste Observatório).


O ano de 2006 pode enriquecer muito o tema, mas os editores de nossos jornais e revistas devem tomar o cuidado de escolher melhor a quem confiar a pauta. Nesta semana [9 a 15/4] a revista Veja (nº 1951, de 12/4/2006) trouxe o tema para sua seção de religião e apresentou matéria – sem assinatura, portanto da direção da revista – cuja abertura dá bem a idéia da superficialidade com que foi tratada: ‘Tudo o que se sabe sobre a vida de Jesus Cristo é contado nos quatro Evangelhos canônicos – Marcos, Lucas, Mateus e João’.


Jornalismo irresponsável tem disso: com poucas frases o anônimo redator liquidou com todas as epístolas, principalmente as de são Paulo, que falam de Jesus o tempo todo, e principalmente com os Atos dos Apóstolos.


Dois Brasis


Os enganos não páram aí. Adiante, Veja diz que ‘o documento é citado pelo bispo Irineu de Lyon, em sua obra Contra a Heresia (sic), escrita no ano 180′. Faz algum tempo que a maior revista brasileira de informação ignora – na verdade, faz décadas – importantes lançamentos. Assim, não deve ter tomado conhecimento de que o livro de Santo Irineu está na praça, já em segunda edição pela editora Paulus, e tem outro título: Contra as Heresias, pois o santo homem de Deus escrevia com cuidado, apesar da pressa em combater os hereges, que eram muitos nos primeiros séculos, e caprichava também nos títulos. Se as heresias eram muitas, o título deveria estar no plural. E foi o que ele fez, o que foi respeitado pelo tradutor da edição brasileira, Lourenço Costa, ainda que o título, como no latim (Adversus Haereses), tenha sido reduzido.


O título do original grego é Élencos Kai anatropè tês pseudonúmou gnóseos. A edição brasileira tem muito mais do que Contras as Heresias. Na verdade, são cinco livros da autoria de Santo Irineu. E ainda assim tudo isso é parte de uma obra maior, intitulada Epídeixis toû apostolokoû kerýgmatos (Exposição da pregação apostólica). Sabemos muito das heresias ao ler Santo Irineu porque nos primeiros livros – depois a pressa parece que impediu isso – ele as expunha antes de refutá-las. Outras obras de Santo Irineu, escritas igualmente em grego, chegaram até nossos dias por obra de traduções armênias.


Veja e muitas outras publicações ignoraram Contra as Heresias, mas os leitores, não. A obra já foi reeditada e integra a coleção Patrística, que, entre seus 18 títulos, tem muitos outros lançamentos igualmente imperdíveis, como as Confissões e A Graça (em dois volumes), de Santo Agostinho, História Eclesiástica, de Eusébio de Cesaréia, onde os redatores de Veja encontrariam mais algumas ‘coisinhas’ sobre o personagem de quem só sabem por meio dos Evangelhos.


Este interesse pelos padres escritores dos primeiros séculos surgiu nos anos 1940, na Europa, especialmente na França, onde uma coleção intitulada Sources Chrétiennes já tem mais de 400 títulos. Reflete um movimento liderado por vários intelectuais cristãos, entre os quais o cardeal Jean Daniélou, da Academia Francesa, falecido em 1974.


Mas nossa imprensa dá matéria de capa a criminosos, a políticos corruptos, certa de que é assim que se vendem jornais e revistas, deixando os leitores à míngua de informações sobre questões essenciais, cultivando neles outra heresia: a de que, se o papel aceita tudo, os leitores também.


Nem leitores, nem eleitores aceitam tudo. Quanto aos primeiros, a imprensa está devendo muito sobre nossas mais de três mil editoras, que compõem o segundo mercado editorial das Américas (o Brasil já ultrapassou o México e o Canadá, faz tempo). E eles, que lêem jornais e revistas, além de livros, certamente não aceitam dividir os muitos Brasis em apenas dois: contra Lula ou favor de Lula, que é o grande tema da imprensa, como se o Brasil real fosse reduzido ao noticiário político.


Quanto aos segundos, as urnas, como as cabeças dos juízes e as bundas das crianças, costumam trazer muitas surpresas.


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O Evangelho de Judas pode ser lido em inglês aqui e em copta, aqui.

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Escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá (Rio de Janeiro), onde dirige o Curso de Comunicação Social