Sobre a natureza humana
Os outros jornais apenas noticiaram o flagrante de supostos voluntários roubando donativos enviados aos flagelados de Santa Catarina.
Mas o Globo resolveu propor aos seus leitores uma reflexão sobre o episódio.
Esse é o tema que ocupa quase metade da primeira página, formando a manchete do jornal carioca: ‘Que país é este, onde se rouba flagelado?’
As imagens de militares e civis carregando roupas e calçados que deveriam selecionar para serem entregues às famílias atingidas pelas enchentes causaram indignação por todo o País, mas apenas o Globo resolveu propor uma reflexão sobre o fato.
É verdade que há lugares-comuns nas opiniões selecionadas, mas o jornal cumpre seu papel de não passar simplesmente pelos acontecimentos.
Entre os entrevistados há aqueles que sempre acham que o exemplo dos políticos e outros agentes públicos define o comportamento da sociedade, mas também há boas reflexões que podem ajudar o leitor a pensar sobre seu próprio comportamento.
Afinal, observa o jornal, é nas tragédias que se conhece o melhor e o pior do ser humano.
Mas o Globo não apenas analisa o comportamento criminoso dos ladrões de donativos.
Também está publicada na edição de hoje do jornal carioca e do Estado de S.Paulo a história do agricultor Daniel Manoel da Silva e sua família, que devolveram vinte mil reais encontrados na manga de um casaco recebido como doação.
Há outros casos de desvio, como o que aconteceu em São Paulo, onde quatro agentes da Defesa Civil furtaram alimentos que deveriam ser enviados a Santa Catarina, mas nem tudo é mau comportamento.
A decisão do Globo, de propor um momento de reflexão sobre a atitude criminosa que se destaca em meio ao movimento de solidariedade, cumpre uma das missões da imprensa – a de não apenas noticiar os acontecimentos, mas também estimular o público a refletir sobre eles.
Como diz um dos entrevistados, se apenas se noticia a perversão de alguns, pode-se estar desestimulando o espírito solidário, que é o melhor de todos.
Para refrescar a memória
A série de reportagens e artigos publicados nos últimos dias em referência aos quarenta anos do Ato Institucional número 5 passou ao largo de alguns episódios importantes.
Luiz Egypto, editor do Observatório da Imprensa:
– Na recente rememoração dos quarenta anos do Ato Institucional nº 5 (AI-5), completados no sábado passado, dois pontos merecem ser destacados. Um deles é a reação dos jornais à truculência da ditadura militar, que depois do AI-5 deixou rolarem soltos os seus mais ferozes instintos. Muitos jornais – e revistas – enfrentaram a barra-pesada e a censura prévia com galhardia, tentando informar seus leitores nas entrelinhas ou por meio de soluções editoriais cifradas; outros, porém, entregaram-se placidamente aos confortos da autocensura, como forma de garantir a sobrevivência sem melindrar os poderosos de plantão.
O segundo ponto a destacar é o comportamento que à época teve o Correio da Manhã, diário fundado em 1901, no Rio de Janeiro, e que se tornou um dos mais influentes do país. O jornal havia apoiado o golpe de 1964, mas logo depois passou a fazer oposição ao novo regime. Como lembra o jornalista Fuad Atala, em artigo na edição online deste Observatório, menos de uma semana antes do AI-5 o jornal havia sofrido um atentado a bomba. O Correio noticiou o fato, responsabilizando pelo crime o então presidente da República, general Artur da Costa e Silva.
O Correio da Manhã recusou compactuar com a autocensura e, por isso, foi especialmente visado pelos censores. A ditadura influiu para que os bancos lhe cortassem o crédito e para que os anunciantes abandonassem o jornal. Em março de 1969, o Correio entrou em concordata. Foi arrendado por um grupo de empreiteiros e fechou em definitivo as portas em julho de 1974.
Esses tempos que não deixaram saudade, mas precisam ser bem conhecidos, sobretudo por quem não os viveu.