Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Marcelo Beraba

‘O país viveu, nas últimas duas semanas, em conseqüência do embate travado pelos ministros Antonio Palocci (Fazenda) e Dilma Rousseff (Casa Civil) em torno dos rumos da economia. Normais em qualquer administração, as diferenças de pensamento ganharam ares de uma crise incontrolável por conta da situação frágil do governo Lula e de seu ministro, ambos acusados de corrupção.

O novo capítulo da crise do governo começou no dia 9, com uma entrevista da ministra para o ‘Estado de S.Paulo’: ‘Dilma descarta ajuste fiscal defendido pelo Planejamento’. Com o agravamento da crise, passou-se a discutir concretamente a saída do ministro. No dia 13, a Folha publicou: ‘Caso Palocci saia, Mercadante é a opção’.

A temperatura esquentou de vez na segunda-feira, dia 21. O jornal começou a rodar a edição de terça às 20h30 com a informação de que Palocci tinha pedido demissão na quinta (17) e condicionava sua permanência no governo a mais apoio de Lula. A manchete foi ‘Lula elogia Palocci, que ainda avalia se continua no cargo’. Na edição das 23h, o jornal acrescentou uma nota no ‘Painel’ informando que uma pessoa ouvira do presidente que Palocci ‘está fora do governo’ e que iria depor naquele dia na Câmara ‘apenas para cumprir o roteiro’. A manchete foi apimentada: ‘Lula elogia Palocci, que já pediu para deixar o governo’, e o texto da primeira página deu uma informação que a nota do ‘Painel’ não sustentava: ‘(…) Palocci (…) já avisou ao presidente que deixará o governo, informa o Painel’. Uma confusão.

O desfecho da crise é conhecido: as desavenças com a ministra Rousseff persistiam, mas Palocci, embora tenha realmente pedido a demissão, permanecia até ontem no governo.

Jornalismo mediúnico

O enfrentamento palaciano colocou em foco o uso de fontes anônimas na cobertura jornalística. Muitos leitores se dizem incomodados com reportagens publicadas sem identificação de fonte, principalmente as que trazem confidências. Como o jornal pode saber o que pensa o presidente? Foi o que perguntou Fernando Bayeux de Araújo, de São Paulo: ‘O que é isso: um jornalismo mediúnico?’.

Algumas observações. Primeiro, nenhum jornal que se pretenda bem informado sobre o poder público e que se disponha a revelar seus desvios, irregularidades e crises pode prescindir de fontes anônimas. É uma ingenuidade imaginar que as pessoas vão se expor a punições e represálias de governantes que querem manter seus erros longe dos holofotes.

Algumas grandes reportagens da história recente da Folha foram possíveis graças a fontes anônimas, como as revelações sobre o programa nuclear paralelo dos militares e a fraude na licitação da Ferrovia Norte-Sul.

O problema, no entanto, é quando esse recurso é usado de forma abusiva e irresponsável. A crise de credibilidade dos jornais norte-americanos passa por esse diagnóstico, como ficou claro nos casos de informações sobre o Iraque. Não há escândalos parecidos no Brasil por uma razão simples: aqui, com raras exceções, a imprensa não tem coragem de expor seus próprios erros.

Relação de confiança

A Folha tem regras claras para o uso de informações ‘off the record’. Elas estão no ‘Manual da Redação’ e foram reforçadas em comunicado interno datado de 17 de julho de 2003.

‘O emprego de informações ‘off the record’ está banalizado no jornal. É preciso redobrar os cuidados na apuração e os controles na edição de notícias obtidas desse modo. Sempre que solicitados, repórteres devem comunicar a origem dessas informações aos seus superiores hierárquicos. Estes, conhecendo a identidade das fontes que são mantidas no anonimato, devem cuidar da manutenção do sigilo’. Como estabelece o ‘Manual de Redação’ (pág.46), é necessário checar e cruzar esses dados, assegurando a confiabilidade da notícia e verificando os interesses em questão.’

No caso da cobertura recente, os dois lados da disputa ministerial tentaram manipular a imprensa plantando informações desencontradas. É sempre assim. O que se espera dos meios é que tenham capacidade e independência para separar as especulações e publicar os fatos. A Folha procurou manter seus leitores bem informados depois que o ‘Estado’ publicou a entrevista da ministra Rousseff que desencadeou a crise. É fato que o ministro Palocci pediu demissão em mais de uma ocasião e fez exigências para permanecer no cargo. Não estou seguro de que o presidente em algum momento tenha dado como irreversível a saída do ministro. É possível. A reconstituição posterior deste momento esclarecerá. De qualquer forma, a edição de terça da Folha foi confusa e errou ao atribuir ao ‘Painel’ uma informação que a coluna não continha.

O uso de fontes anônimas implica uma relação de confiança entre o jornal e seus leitores. Eles têm de estar seguros da qualidade das fontes que abastecem os repórteres do jornal, mesmo sem saber quem são. Os repórteres e editores têm de estar conscientes desta responsabilidade.

Os leitores não podem ser enganados. Uma informação falsa tem de ser corrigida o mais rapidamente possível, e eles têm de ser informados nos casos de comportamento antiético de jornalistas. É assim que se estabelece a confiança.’

***

‘Os bastidores do poder’, copyright Folha de S. Paulo, 27/11/05.

‘Kennedy Alencar é um dos repórteres da Folha que acompanha, em Brasília, os bastidores do poder. Foram dele as principais reportagens que o jornal publicou ao longo das últimas semanas sobre o confronto entre os ministros Palocci e Rousseff e a repercussão no Palácio do Planalto. Ele tem 38 anos, 15 de profissão, e está no jornal desde 1995, depois de ter trabalhado como assessor-adjunto de imprensa do candidato Luiz Inácio Lula da Silva em 1994. Cobriu duas guerras (Kosovo e Afeganistão).

Ombudsman – Como você trabalha para obter informações exclusivas sobre o presidente?

Kennedy Alencar – É um processo investigativo. Escuta-se uma fonte, checa-se a informação, filtra-se o interesse da fonte. O filtro tem critérios objetivos: o histórico de confiabilidade, saber de qual lado da história está, qual o interesse na divulgação da informação. Repito o processo com outras fontes. Falo com quem conversou com o presidente, com seus ministros, auxiliares, aliados no Congresso e até com oposicionistas que o visitaram. A partir do cruzamento de informações, surge um quadro do que o presidente pensa, planeja e avalia.

Ombudsman – Que critérios usa para escolher as fontes?

Alencar – O critério principal é o da confiabilidade. Se a fonte, repetidas vezes, deu informações verdadeiras, entra numa lista de contatos que busco fazer regularmente. São exceções as reportagens baseadas em apenas uma fonte, por mais confiável que seja. Na maioria das vezes, a reportagem é resultado de um quebra-cabeça montado nas últimas 24 ou 48 horas. Há reportagens que são resultado de dias.

Ombudsman – A cobertura jornalística do poder pode prescindir do uso de fontes anônimas?

Alencar – Nenhum tipo de cobertura deve prescindir. O anonimato dá segurança para transmissão de informações que a fonte não pode assumir publicamente.

Ombudsman – Como você encara as críticas freqüentes que questionam reportagens de impacto sem fonte nomeada?

Alencar – Respeito e acho pertinentes. O chamado ‘off’ aumenta a responsabilidade do jornalista. Essa responsabilidade deve ser dividida com a chefia (editores). Há risco de injustiça, de o jornal servir de instrumento de um político, de um empresário com interesse contrariado, de um mal-informado que se pretende importante. Seja no ‘jornalismo de bastidor’, seja no chamado ‘jornalismo investigativo’, é importante estar atento ao risco de manipulação por fontes com interesses contrariados que desejam atingir adversários. Se o anonimato protege a boa fonte, protege também a fonte ruim. O interesse público é um critério objetivo para validar informações obtidas de uma fonte com interesses, mas é importante não avançar o sinal, não fazer acordos como moeda de troca em nome do furo a qualquer preço. Isso seria tomar partido e admitir ser usado, o que um jornalista não pode fazer.’