Por esta a mídia não esperava. Graças à disposição do cardeal americano James Francis Stafford, penintenciário-mor do Vaticano, o excesso de internet, TV e jornais representa agora nova forma de pecado. A orientação foi enunciada durante celebração penitencial por ocasião da Semana Santa, na Basílica de São Pedro. No Brasil, um dos maiores consumidores de TV do mundo, a notícia não repercutiu. Mas em Portugal o assunto ganhou as páginas dos principais jornais.
Não bastassem os infortúnios terrenos – perseguições do poder e da justiça, concentrações, bancarrotas, morte de jornalistas, erros e omissões –, a mídia tem agora que enfrentar o dedo acusatório dos céus. A cruzada contra as novas tecnologias empreendida pela igreja, como de resto sua crítica anacrônica aos desafios postos pelos novos costumes, segue na contramão de uma realidade já estabelecida. ‘Os novos pecados definidos ontem pelo Vaticano podem complicar a vida aos padres que investem o seu tempo a divulgar as paróquias e a evangelizar através da internet. Cada vez há mais sacerdotes com ‘sites’ e blogues na rede, mas com as novas orientações, em vez do título de ciberpadres, arriscam-se a passar por ciberpecadores’, informou o Correio da Manhã (14/4/2006), de Lisboa.
Se a própria instituição incorre em ciberpecados, como exigir fidelidade do rebanho? A inexorável realidade midiática vai contra esse mau passo do Vaticano. Alguém convencerá o padre Marcelo Rossi de que seus megashows são coisa do demo? E a figura do papa João Paulo II, transformado num dos maiores ícones pop do século 20 graças ao poder da mídia?
Representantes da igreja em Portugal escarneceram do novo índex de Roma. Falando ao Correio da Manhã, o bispo das Forças Armadas D. Januário rotulou de ‘ridícula’ a proposta do Vaticano:
‘Se assim é, então eu sou um grande pecador. Leio muitos jornais, navego na ‘net’ o tempo que for preciso e vejo televisão, como toda a gente’.
Mas há os que subscrevem as diretrizes do cardeal. O padre Vaz Pinto, em depoimento à TSF (serviço de webradio), reproduzido no Correio da Manhã, argumentou:
‘Não há dúvida de que hoje há um gasto imoderado de tempo que leva muitas vezes a grande passividade, à distracção do mais importante. Não há o melhor uso da nossa vida, tempo e amor. (…) Quem passa a vida na informação acaba por não poder intervir no resto da vida, deixando coisas mais importantes: a mulher, os filhos, o desporto, a cultura, serviço social e por ai fora’.
Dadas as repercussões atingidas pelo novo repertório de pecados, o cardeal Stafford explicou-se à TV Net, emissora dos Açores que transmite pela internet:
‘O que eu pedi foi às pessoas para fazerem um exame de consciência: será que gasto uma quantidade desproporcional de tempo a ler jornais, vendo televisão e navegando na internet em comparação com o tempo gasto lendo e meditando sobre as sagradas escrituras?’.
Na Idade Média
É inegável a predominância do lixo midiático na vasta programação mundial de TV, jornais, internet, em qualquer parte do planeta. Sem qualquer intenção de profilaxia religiosa, até existem movimentos relativos à não-mídia que pregam a abstenção do uso da TV, porém mais como forma de desafiar o poder hegemônico dos grandes conglomerados de comunicação. Mas que argumento usaria o cardeal se confrontado por um fiel que passasse horas absorvendo a mensagem do catolicismo justamente através do aparato midiático oferecido pelo próprio Vaticano? Só o website da instituição pode ser lido em vários idiomas. E há ainda o jornal, a emissora de rádio etc.
O responsável pela TV Net afirmou que o cardeal se manifestou surpreendido pelas interpretações que foram dadas às suas palavras. Pelo visto, João Paulo II não fez escola no Vaticano, ao beneficiar-se da superexposição graças à força avassaladora da mídia, em lugar de criticá-la puramente. Se tivesse feito, ou o cardeal Francis Stafford estaria de fora dessa polêmica, ou teria aprendido que não se mexe com a mídia impunemente, sob pena de incorrer, em si mesmo, num grande pecado. Ou colaboraria para tirar a igreja da Idade Média em que ainda vive.
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Jornalista, editor do Balaio de Notícias