Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Populismo para inglês ler

O populismo é um fenômeno político que varreu a América Latina nos anos 1950. Desde então, o termo foi definitivamente incorporado ao vocabulário popular, e passou a ser utilizado genericamente para rotular qualquer ação de governo em prol das camadas menos favorecidas da população. No governo Lula, o termo ganhou o status de varinha mágica nas mãos da imprensa para explicar a política social do primeiro presidente operário na história do Brasil. Para os cientistas políticos, é um equívoco usar a expressão dessa forma. Ela descreveria um momento específico da história de alguns países do nosso continente.

Seja como for, o reducionismo está presente também na imprensa lá fora. Em sua edição de 12/4, a prestigiada revista The Economist, leitura obrigatória de nove entre 10 executivos, saiu-se com esta matéria: ‘O retorno do populismo’. O alvo é a América Latina e o arrastão de esquerda que tem varrido a maioria dos países. Para a revista, esse movimento à esquerda ‘mascara algo mais complexo: o renascimento de uma tradição política influente na América Latina’.

Na análise, ficamos mal na fita. A revista tenta mostrar nuances entre os novos presidentes latino-americanos. Há os moderados, como Lula, Michelle Bachelet, Oscar Arias e Tabaré Vázquez. E há os outros, como Hugo Chávez, Nestor Kirchner, Manuel López Obrador, Evo Morales e Ollanta Humala, com fortes chances de vitória no Peru. Não importa a variação de tonalidades. ‘Todos correspondem à tradição latino-americana do populismo’, taxou a revista.

É bem verdade que o continente jamais se livrou da pecha de cenário de golpes e rapinagens, mesmo decorridas décadas dos golpes militares que o assolaram a partir dos anos 60. A imagem cucaracha nos persegue, como uma herança maldita. Cobras e índios circulam livremente pelas ruas do Rio de Janeiro ou de Bogotá, enquanto em cada esquina um Che caricato trama a revolução.

‘Populismo é um conceito escorregadio’, afirma a revista. ‘Porém, é central para compreender o que acontece na região’. No entanto, reconhece que se trata de um termo usado de forma abusiva, mais no sentido de suprir os instintos básicos dos eleitores. Mas esclarece que, ao longo da história, o sentido de ‘populismo’ sofreu variações. Na Rússia do século 19, o populismo era uma ação de intelectuais da classe média que procuravam defender os interesses comunais das camadas rurais contra a influência do liberalismo ocidental.

Foi na América Latina que o populismo deitou raízes duradouras, com as figuras de Getúlio Vargas no Brasil, Juan Perón na Argentina e Hugo Estenssoro na Bolívia. Nas lideranças atuais, segundo The Economist, ecoa o domínio que aqueles velhos dirigentes exerciam sobre as massas, com seu grande poder de oratória. Veja o caso do presidente venezuelano. ‘A revolução bolivariana de Chávez confia firmemente em sua capacidade de comunicador, exercitada todos os domingos em seu programa de TV de quatro horas de duração’, exemplifica a revista.

O fantasma do nacionalismo

Segundo a tradição populista, os líderes procuravam manter uma ligação direta com as massas, preferindo movimentos pessoais a partidos bem organizados. ‘Retirem Chávez da revolução bolivariana e nada restaria dela’, provoca a revista. O contraste com Chávez são as figuras de Bachelet e Lula, que teriam atrás de si o apoio de partidos. A matéria dá como 800 mil os associados do PT. Parece ignorar a crise sem precedentes em que se meteu o partido, de cuja herança o presidente procura se livrar, configurando um fenômeno que escapa à análise da revista britânica.

Porém, ela se mantém batendo na tecla do populismo, fazendo um paralelo entre o passado e o presente na América Latina. ‘Os populistas viam as eleições como um caminho para o poder, mas também acreditavam em mobilização de massas. Eram pouco democráticos no exercício do poder: borravam a distinção entre líder, partido, governo e estado’. Assim fazia Perón na Argentina e assim procede Chávez na Venezuela, seguido de perto por Morales e Humala, segundo a Economist. A herança militar dos antigos líderes, como Vargas, Perón e Lázaro Cardenas, no México, também é notada. O mesmo ocorre com Chávez e Humala, ambos tenentes-coronéis aposentados. ‘Parte do apelo desses líderes é o do caudilho militar, que promete justiça para o seu povo ao tomar medidas firmes contra os exploradores’.

Incorrendo num paralelismo histórico, questionável como método de análise, como se meio século não houvesse trazido mudanças à América Latina, The Economist vê outros fatores que explicam o retorno do fantasma do populismo. O mais notório é o nacionalismo, obviamente presente nos discursos de Hugo Chávez e Evo Morales. Mas há também a crítica anticapitalista que sustentam em suas plataformas de governo – embora, na prática, atuem no capitalismo.

Viés tendencioso

‘O populismo é cheio de contradições’, reconhece a reportagem. E pontua essas contradições com exemplos que estão bem aí, no noticiário. Em primeiro lugar, trata-se de um sistema antielitista que, no fim, acaba criando novas elites. Em segundo lugar, sustenta uma cruzada contra a corrupção – porém, no fim das contas, acaba criando mais corrupção. Todavia, há características que podem diferenciar esse novo populismo. Elas estariam na origem mestiça de líderes como Chávez e Humala, e em suas plataformas que privilegiam tanto trabalhadores rurais quanto urbanos. E hoje a luta seria em favor dos excluídos da globalização, e não da industrialização, como ocorria nos anos 50.

Para a revista, o populismo persiste na América Latina em razão da desigualdade. Isso acarreta o surgimento de lideranças messiânicas prometendo um novo mundo. Nessa segunda onda do fenômeno na região, novos ingredientes vêm se somar ao discurso dos governistas – como a crença na riqueza desses países baseada em reservas minerais. Óbvio que a cutucada recai sobre Hugo Chávez e Evo Morales. Mas a verdadeira riqueza, prega The Economist, está na mistura de políticas e instituições. ‘Quaisquer que sejam as conquistas do passado, os líderes populistas estão conduzindo a América Latina a um beco sem saída’, conclui.

A matéria aparenta um viés tendencioso, uma vez que parece ter sido feita para atingir com mais força as figuras de Hugo Chávez e Evo Morales, as vozes mais dissonantes no coro dos contentes com as políticas neoliberais, como Lula, no Brasil, e Bachelet, no Chile. Produzida a partir da leitura de meia dúzia de livros que se debruçaram sobre a América Latina, pouco acrescenta à complexidade realmente existente por aqui. No fundo, algo para inglês ler.

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Jornalista, editor do Balaio de Notícias