O governo liberou 26,2 bilhões de reais para suas despesas, numa única semana, por meio de duas medidas provisórias. Foram publicadas em edições especiais do Diário Oficial da União, uma na quarta, outra na quinta-feira (13/4). Um mês antes, a Receita Federal havia informado em São Paulo a intenção de abordar consumidores para exigir-lhes a nota fiscal de suas compras. Se não apresentassem, os fiscais poderiam apreender os produtos. As alegações das autoridades, nos dois casos, pareciam razoáveis. Num, combater o contrabando. Noutro, garantir dinheiro para investimentos e para as atividades normais da administração, apesar do atraso de quase quatro meses na votação do Orçamento.
Havia outra semelhança entre as duas iniciativas. Podia-se desconfiar de sua legalidade, num e noutro caso, mas a maior parte da imprensa não fez muito esforço para esclarecer o assunto. Em março, o superintendente-adjunto da Receita Federal em São Paulo, Guilherme Adolfo Mendes, invocou a lei nº 4.502, de 1964, como fundamento para a fiscalização dos consumidores. A Folha de S.Paulo chegou a publicar um pequeno texto sobre a lei, sem pôr em dúvida as declarações do funcionário.
O cheiro de arbitrariedade era muito forte, mas não houve grande reação. A imprensa poderia ter feito um belo barulho, no entanto, se algum redator ou repórter houvesse dedicado cinco minutos da revista eletrônica Consultor Jurídico, de 16 de março. Aquela edição trazia um artigo intitulado ‘Tocaia no shopping – quando o fisco federal se torna cangaceiro’. O texto, produzido pelo advogado Raul Haidar, esmiuçava a lei 4.502 e esclarecia: a fiscalização só é aplicável aos ‘sujeitos passivos de obrigações tributárias previstas na legislação do Imposto de Consumo, não aos consumidores’, segundo o artigo 94.
Mais: não sendo o consumidor sujeito a esse tipo de fiscalização, nenhum funcionário poderia abordá-lo depois da compra. A abordagem seria um abuso de autoridade, tal como definido na lei nº 4.898, de 1965.
A referência a esses argumentos poderia ser, no mínimo, combustível para um bom e importante debate, mas o assunto morreu.
Fato raro
No segundo caso, o das MPs financeiras, a oposição reagiu. A edição de MPs para liberação de verbas orçamentárias ainda não aprovadas pelo Congresso ‘é um mecanismo questionado juridicamente’, informou Lu Aiko Otta no Estado de S.Paulo de sábado (15/4). A matéria menciona também a opinião da Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara: o governo não poderia alegar um fato inesperado – o atraso na votação do orçamento –, pois a Lei de Diretrizes Orçamentárias indica as despesas permitidas quando ocorre aquele atraso. A questão da legalidade, no entanto, não foi mencionada no título nem no subtítulo da matéria.
O embasamento das MPs financeiras nos artigos 62 e 167 da Constituição era altamente discutível e isso poderia ter sido explorado em boas matérias. A maior parte dos gastos previstos dificilmente se enquadraria no critério de urgência do artigo 62. Uma das MPs destinava dinheiro, por exemplo, para ações de comunicação e inteligência da Presidência da República. Os objetivos do governo também pareciam muito distantes das condições indicadas no parágrafo 3º do artigo 167: ‘A abertura de crédito extraordinário somente será admitida para atender a despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública, observado o artigo 62’.
Mesmo quando a reportagem menciona o assunto – fato raro –, a edição tende a menosprezar o debate sobre a legalidade das ações do governo. Esse aspecto só é destacado quando a violação da lei se torna o fato político do dia, como no caso da quebra do sigilo bancário de Francenildo Costa, o caseiro da turma de Ribeirão Preto.
Estado de direito
Mas até nesse episódio o confronto mais barulhento acabou deixando em segundo plano um dos aspectos mais importantes da violação: a entrega do extrato bancário à revista Época. O crime não consistiu só na bisbilhotice de quem pediu o extrato da conta. Também não se esgotou no envolvimento da Polícia Federal e do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). Alguém passou os dados bancários de um particular a uma revista e isso bastaria para configurar um crime grave, mesmo que a extração dos dados por um funcionário houvesse ocorrido de forma legal.
Esse detalhe motivou menos barulho, obviamente, porque a investigação do primeiro delito, a violação da conta, parecia mais importante no confronto político imediato. Mas isso é uma inversão e uma perversão. Em países com tradição democrática mais forte, a denúncia de uma violação gera fatos políticos importantes. No Brasil, é a valoração política dos fatos – entenda-se: valoração de curto prazo – que determina se uma violação vale manchete ou esforço de investigação jornalística.
Os meios de comunicação, no Brasil, também estão descobrindo o estado de direito. Nesse aspecto, podem estar mais adiantados que os políticos, mas não muito mais.
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Jornalista