‘As novas gerações do digital e da web estão a crescer no meio de uma floresta de equívocos e de paradoxos alimentados sobretudo pelos adultos, sejam eles os pais, os professores, os políticos ou os media. Os equívocos rodam em torno da impreparação para viver num mundo que muda de forma estonteante. Os paradoxos centram-se numa sociedade dita da informação e da comunicação, na qual não é seguro que se esteja a comunicar melhor.
Tive ocasião de participar, há dias, num encontro promovido pela Direcção Regional de Educação do Norte, subordinado ao tema ‘Geração W educação e media’, que contou com a presença de largas centenas de docentes. Nessa ocasião, tornou-se claro que os jovens de hoje continuam a transportar consigo sonhos e projectos que também caracterizaram gerações passadas, ainda que os acalentem em contextos e com desafios completamente novos.
Esta geração da web está longe, em primeiro lugar, de ser uma realidade homogénea. Estilos de vida na superfície parecidos dificilmente escondem as contradições e desigualdades existentes quando se observa a situação um pouco mais fundo. Criada em famílias cada vez mais diversas na sua configuração, em que a interacção com os adultos se tem reduzido, com uma escolaridade mais prolongada e sem garantia de que os estudos que faz a irão conduzir a um emprego estável, esta geração experimenta na pele a incerteza e a insegurança. Mas tudo continua a estar organizado como se as coisas se passassem como há trinta ou quarenta anos, desde a cabeça e os comportamentos dos papás às formas de organizar a aprendizagem escolar. Como escreveu Marshall McLuhan, continuamos a preparar as crianças e os adolescentes para um mundo que já não existe.
Os media, novos e velhos, ocupam uma centralidade na vida das novas gerações que não carece de demonstração (embora careça de estudo apurado). Como bem revela o recém-lançado canal ‘Baby TV’, as crianças começam a ver televisão ainda antes de terem dentes e agarram-se ao pequeno ecrã até pelo menos à adolescência. Mas ao contrário do que alguns dizem, não é tanto o facto de verem televisão que deve preocupar, mas, antes, o de terem na TV o ‘prato único’ ou dominante do seu dia-a-dia e de ser ela a ‘avó electrónica’, em substituição dos adultos. Os jogos vídeo e online, os telemóveis de terceira geração, os leitores de música, os chats e os blogues constituem, nos dias que correm, as imagens distintivas, os temas de interacção e o horizonte de vida de uma parte substancial das gerações mais novas. Não são estas máquinas e estas ocupações que matam ou que salvam (supondo que só por si o consigam). O ponto está em que elas não se tornem na nova flauta de Hamelin, recurso encantatório que não deixa ver para onde (não) se vai. E, no entanto, talvez haja, nesse frenesi de expressão e de comunicação competências e aprendizagens importantes para a vida, que os educadores e a escola não perdiam nada em conhecer e valorizar.
É neste quadro de fundo, aqui desenhado a traços necessariamente grosseiros, que também se coloca uma questão que deveria fazer tirar o sono aos directores de jornais, aos jornalistas e aos gestores das empresas jornalísticas. Refiro-me ao fosso crescente entre os mais novos e a imprensa generalista. Também aqui, provavelmente, os jornais exprimem e configuram um mundo que já não é o dos mais novos.
O problema é particularmente sentido noutros países e ainda recentemente a Associação Mundial de Jornais organizou em Buenos Aires um encontro internacional sobre o assunto, no qual se multiplicaram os relatos de experiências (aparentemente ainda incipientes) de resposta aos sinais de alarme. Em Portugal o quadro prospectivo é tão grave ou mais do que lá fora, mas, a julgar pelo que se ouve e lê, está tudo calmo, a fazer de conta, parecendo não se ver o que salta aos olhos.
Dir-se-á que este é apenas mais um sintoma da crise mais geral e mais funda que afecta a Imprensa, que vai seguramente acarretar não o seu fim mas a sua transformação profunda. Dir-se-á que a imprensa gratuita virá suplantar os diários generalistas pagos; que os jornais on-line, porventura muito diferentes dos de hoje, suplantarão o papel; que o próprio jornalismo se transformará. Tudo isso pode vir a ser realidade múltiplos sinais o prenunciam já. Mas, ainda assim, fica de pé o desafio de criar leitores, de fazer jornalismo que se aproxime dos universos dos mais jovens, que os torne cada vez mais actores, e não apenas destinatários, dessa mesma informação.
Como provedor dos leitores, creio que me cabe esta chamada de atenção, que não é sequer dirigida apenas ao Jornal de Noticias. Penso, aliás, que este é um desafio de natureza cultural e cívica que vai muito para além dos jornais e do jornalismo. Mas, no seu próprio interesse, são estes que têm de enfrentar o desafio. E, do meu ponto de vista, ele não será vencido sem o envolvimento activo e multiforme dos leitores.
A urgente tarefa da alfabetização digital
Encontramo-nos numa altura em que diferentes sectores da sociedade civil exigem aos candidatos a Presidente da República que se pronunciem sobre isto e sobre aquilo. Também eu venho propor que esses candidatos não apenas digam o que pensam, mas assumam compromissos quanto à urgente tarefa de alfabetização digital que é necessário e urgente lançar no nosso país.
Com choques tecnológicos ou sem eles, a verdade é que os mais novos crescem num mundo em que, cada vez mais, as competências para seleccionar, analisar e escolher a informação pertinente são decisivas para o sucesso pessoal e para o exercício da cidadania. Os media profissionais vêem cada vez mais disputado o seu quase-monopólio sobre a informação de actualidade disponível, mas continuarão a deter uma centralidade incontornável na sociedade e na cultura. A capacidade de ler os media de forma crítica, de dominar minimamente a gramática das velhas e novas imagens, de conhecer as novas linguagens que permitem passar de leitor a interveniente no ciberespaço, as competências, enfim, para discernir a informação credível daquela que não merece confiança – constituem desafios de enorme transcendência na formação das gerações mais jovens.
Já há mais de três décadas que a UNESCO alerta para o facto de já não bastar a aprendizagem do ‘ler, escrever e contar’ para se ser alfabetizado. De resto, já não basta uma mera alfabetização mediática (que permanece, de resto, como uma tarefa educativa de primeira grandeza). A migração para o digital, os novos media e a comunicação em rede estão a criar um ecossistema de características novas, que supõem igualmente novas competências.
Seria dramático que as políticas públicas, nesta matéria, se centrassem no acesso e destreza no uso das tecnologias. Sendo certo que se torna imprescindível dominar as ferramentas básicas e delas saber tirar proveito, esquece-se frequentemente que este é um requisito necessário, mas muito insuficiente. O que se passa com o eficaz e simpático Google, usado como se fosse um motor de pesquisa neutro, é bem o exemplo de uma ingenuidade e analfabetismo de consequências preocupantes.
De resto, raramente nos perguntamos se a parafernália de dispositivos e a abundância de informações nos estão a permitir comunicar melhor uns com os outros. Essa é, afinal, a grande pedra de toque da qualidade do mundo que habitamos e que construímos.
Jogando com dimensões tão centrais e decisivas da vida individual e colectiva, a alfabetização para este mundo do digital mereceria um verdadeiro ‘choque cívico’ , com o qual os candidatos presidenciais se comprometessem, dentro da sua esfera de competências.’