A poeira ainda não baixou
Há uma contradição imensa nas bancas nesta segunda-feira. Nas pilhas de revistas, Veja apresenta a figura do Tio Sam com um punhado de dólares na mão e apontando o dedo indicador, como nos cartazes de convocação para o serviço militar americano.
‘Eu salvei você’, diz o ícone do governo de Washington.
No interior da revista, os textos e gráficos tentam convencer o leitor de que o sistema financeiro foi salvo pela mão firme do governo americano.
O presidente George Bush e seu secretário do Tesouro, Henry Paulson, são apresentados como os comandantes da cavalaria que vem salvar o dia.
Nos jornais de hoje, o governo americano aparece numa condição muito mais humilde, apelando aos bancos centrais de outros países, principalmente da Europa, tentando convencê-los a adotar pacotes de emergência para socorrer os bancos privados.
Na Veja, a cavalaria de Bush salvou o capitalismo.
Em seu estilo recheado de frases de efeito, a revista afirma que ‘a promessa de mais dinheiro, o soar do clarim e o tremular da bandeira transformaram o pânico em euforia, e a semana terminou com as bolsas em altas histéricas em todo o mundo’.
Nos jornais, o noticiário é muito mais cauteloso.
Até mesmo a insuspeita Gazeta Mercantil indica que nem o pacote prometido pelo presidente Bush é uma certeza.
O tradicional jornal de negócios noticia em manchete que o Congresso dos Estados Unidos quer auditar a prometida ajuda ao setor financeiro, impondo limites para a remuneração dos executivos corporativos cujas empresas venham a se beneficiar do programa.
O Estado de S.Paulo e a Folha, da mesma forma, informam que a cavalaria americana ainda não salvou coisa alguma e que, na verdade, o sucesso do plano de socorro depende muito da adesão de outros países.
A globalização tem dessas coisas: assim como os lucros vazam pelas fronteiras, também o custo se torna transnacional.
O problema é que nem toda a imprensa parece disposta a manter o leitor atento a todos os detalhes da crise.
A edição de Veja induz à conclusão de que o pior da crise já passou.
Os jornais avisam o leitor para tomar mais cuidado com seu dinheiro.
Vacina contra ilusões
A presente crise financeira internacional revela não apenas as fragilidades do sistema econômico global, mas também certos vícios da imprensa.
Alberto Dines
– O comportamento da nossa mídia na última sexta-feira serviu para mostrar o papel dos meios de comunicação na fabricação das bolhas. Depois da devastação iniciada seis dias antes, como se nada tivesse acontecido, um conjunto de decisões paliativas dos principais bancos centrais, inclusive o nosso, elevaram as cotações das bolsas a níveis extraordinários. A disparada felizmente aconteceu na véspera do último fim de semana que, desta vez, funcionou como um moderador de delírios.
Ficou evidente que a re-arrumação do sistema financeiro foi pontual, pode até manter-se nos próximos dias, mas será incapaz de reconstruir ou, pelo menos maquiar, os tremendos danos causados ao sistema financeiro internacional pela crise hipotecária americana. Os mercados estão mais sensíveis aos efeitos danosos das euforias anteriores, não só admitem mas imploram mais regulação e mais fiscalização.
A mídia, porém, terá que aprender a viver com os pés na realidade. A mídia precisará vacinar-se contra as ilusões de prosperidade instantânea e contra a exaltação produzida por interesses corporativos nem sempre legítimos.
Doravante uma das missões dos meios de comunicação será a de furar bolhas. Mesmo que isto desagrade aos anunciantes do mercado financeiro. Para continuar como defensora do interesse público, a imprensa deverá municiar-se de um estoque de baldes de água para esfriar a cabeça dos delirantes. Se aderir à irresponsabilidade, pode até ganhar alguns bônus, mas ficará com o ônus do apocalipse.
A imprensa periódica surgiu e se desenvolveu há cerca de 400 anos graças à sua capacidade de funcionar como fiscal e como alarme. Tornou-se indispensável porque é confiável, é confiável porque consegue (ou conseguia) ser razoavelmente autônoma dentro do Estado de Direito.
Ao assumir o papel de irrestrita aliciadora de entusiasmos, a imprensa abdica do seu papel crítico. No caso dos surtos do mercado financeiro, a imprensa não pode favorecer a exuberância irracional, mesmo sob o pretexto ‘social’ de distribuir otimismo ao seu público.
A bolsa de Nova York opera sob a égide de dois totens: o urso molenga, cauteloso e o touro bravio, símbolo do empenho e do otimismo, valorizado com uma estátua. Esta é uma polarização calcada em valores particulares. A mídia não tem obrigação de venerar o touro tal como fazem os operadores do mercado financeiro. A mídia deve saber que em suas loucas arremetidas o touro nada enxerga.